Desde o século XIX, começando com os dois maiores daquela época, Romano Teixeira e o negro cativo (ele próprio assim se definia) Ignácio da Catingueira. Só para lembrar, cantadores cantam sempre acompanhados com suas violas. Menos o dito Ignácio da Catingueira e Fabião das Queimadas, que usavam pandeiros. E o Cego Aderaldo, já no século XX, com sua rabeca. Vamos às mais célebres, dessas Pelejas.
PELEJA de MANOEL RIACHÃO (de Araruna, Paraíba) com NÊGO (O Diabo, origem desconhecida). Nas primeiras cantorias, ainda nos tempos da escravidão, começaram a se ver negros cantando. Como um, conhecido como Diabo. Em peleja com Manoel Riachão, tema recorrente era a cor da pele. Seguem alguns versos, como prova.
R (Riachão) - Riachão disse eu não canto
Com negro desconhecido
Porque pode ser escravo
E andar aqui fugido
Isso é dar cauda a lambú
E entrada a negro enxerido
N (Negro) - Eu sou livre como vento
E minha linhagem é nobre
Sou um dos mais ilustrados
Que o sol nesse mundo cobre
Nasci dentro da grandeza
Não sai de raça pobre.
R - Não tenho superior
Sou filho da liberdade
E não conto a minha vida
Pois não há necessidade
Porque não sou foragido
Nem você autoridade.
N - Riachão amas a Deus
Sendo mal recompensado
Deus fez de Paulo um monarca
De Pedro simples soldado
Fez um com tanta saúde
Outro cego e aleijado.
PINTO DO MONTEIRO (de Monteiro, Paraíba) e LOURIVAL BATISTA (Louro do Pajeú, de São José do Egito, Pernambuco), dois gênios. Em mais uma peleja, Pinto preparou armadilha para Louro
Eu saí de Caicó
E fui bater em Tabira
De Tabira prá Penedo
De Penedo a Guarabira
Chegando lá eu comi
O mocotó de traíra.
Como traíra é peixe, Pinto jamais poderia ter comido seu mocotó. Então, certo de ter ganho a peleja, Louro respondeu
Eu já vi muita mentira
De Adão até Aló
De Aló até Isac
De Isac até Jacó
Mas nunca houve quem visse
Traíra com mocotó.
Só para ver, desolado, Pinto cantar
Pois eu vim de Caicó
E fui até Guarabira
Lá vi uma vaca velha
A quem chamavam Traíra
E agora você me diga
Se é verdade ou se é mentira.
PELEJA DO CEGO ADERALDO (de Crato, Ceará) com ZÉ PRETINHO (de Tucum, Paraná). Mais famosa dessas Pelejas é a do referido Cego Aderaldo contra Zé Pretinho. Com o desafio já ganho, e para encerrar com brilho, o Cego tripudiou
Cego - Amigo José Pretinho
Eu não sei o que será
De você no fim da luta
Porque vencido já está
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará
E o outro ficou sem entender esse trava-língua, piorando sua desgraça
Zé Pretinho - Cego, estou apertado
Que só um pinto no ovo
Estás cantando aprumado
E satisfazendo ao povo
Este seu lema de paca
Por favor cante de novo
A partir daí, foi um desassossego
Cego - Digo uma e digo dez
No cantar não tenho pompa
Presentemente não acho
Quem esse meu mapa rompa
Paca cara pagará
Quem a paca cara compra
Zé P. - Cego, teu peito é de aço
Foi bom ferreiro que fez
Pensei que o cego não tinha
No verso tal rapidez
Cego, se não for massada
Repita a paca outra vez
Cego - Arre com tanta pergunta
Deste negro capivara
Não há quem cuspa pra cima
Que não lhe caia na cara
- quem a paca cara compra
Pagará a paca cara
Zé P. - Agora cego me ouça
Cantarei a paca já
Tema assim é um borrego
No bico de um carcará
Quem a cara cara compra
Caca caca Cacará
Após o que Zé Pretinho colocou sua viola na bandeja (com o dinheiro dos ouvintes, um prêmio pra o vencedor), sinal de que reconheceu a derrota.
PATATIVA DO ASSARÉ, cantador e cordelista (de Assaré, Ceará). Para encerrar, esse causo. A casa de Patativa ficava a 18 quilômetros da cidade de Assaré e ele precisava falar com o prefeito. Só que foi várias vezes à Prefeitura e o homem nunca estava. Por isso deixou, na sua mesa, esse recado
Ainda que alguém me diga
Que viu o mudo falando
Um elefante dançando
No lombo de uma formiga.
Não me causará intriga
Escutarei com respeito
Não mentiu esse sujeito
Muito mais barbaridade
É haver numa cidade
Prefeitura sem prefeito.
Resultado, acabou preso. Na cela, encontrou gaiola com uma patativa - que é ave de belo canto. Então escreveu esses versos que ganharam o mundo
Linda vizinha pequena
Temos o mesmo desgosto
Sofremos da mesma pena
Embora em sentido oposto
Meu sofrer e teu penar
Clamam a divina lei
Tu presa para cantar
E eu preso porque cantei.
José Paulo Cavalcanti filho, advogado