OPINIÃO

A linguagem perversa das bolhas

As verdadeiras democracias - aquelas que não são relativas - rejeitam erupções graves, condenam a corrupção, manipulação, embuste e frases nebulosas.

DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 16/07/2023 às 0:00 | Atualizado em 16/07/2023 às 11:49
THIAGO LUCAS/ DESIGN SJCC
Cancelamento na política - FOTO: THIAGO LUCAS/ DESIGN SJCC

É na "maturidade" ou no patético da vida que vamos entender que as histórias que escutamos e lemos na infância asilavam uma multiplicidade de símbolos, aguardando o correr do tempo para serem decodificados. Enquanto isso não ocorre, as histórias recebem apenas o agasalho da inocente fantasia.

No caso de Branca de Neve, por exemplo, seria impossível esquecer a figura de Dunga: as orelhas abanicando, o mutismo característico, o semblante em transformação traiçoeira. Em nossa memória perdura sempre a imagem do anãozinho a lançar infinitas bolhas de sabão. Mas essas empolas voláteis, profusas, transparentes logo revelarão a sua primordial função ao serem decifradas numa entrevista, num colóquio, cimeira, fórum, conclave. Mais: as ideias captadas pelos ouvidos e olhos lassos do público, dependerão, seguramente, do status do ouvinte, da especialidade do grupo, da relevância do evento, da ideologia prevalente e dos interesses prosseguidos pelo expositor. Eis, então, a conclusão coerente: as bolhas, em qualquer idade, se distinguem pelo efêmero, e impermanência. Mais tarde, contudo, elas assumirão outros traços: persuasão, manipulação consciente, engenho e arte daquele que fala. Em qualquer dimensão temporal elas acabam explodindo, sem estalido, no solo ou piso molhado, como se fossem defuntas esperanças convocadas. É por isso, que estamos vivendo o "século líquido" na perspectiva de Zigmunt Bauman: "amor líquido", acordos líquidos, planos de governo líquidos, projetos legislativos líquidos, decisões e sentenças judiciais líquidas, interpretações líquidas... Tudo se converte num objeto de consumo rápido, fácil e descartável. Algo semelhante às mercadorias: sempre que há defeito, existe a possibilidade de troca.

A bolha, com o seu significado manipulativo, cruel e sinistro, faz recordar o discurso de Marco Antônio na peça "Júlio César" de Shakespeare. O texto revela a facilidade de ludibriar a plateia e produzir a convulsão ou baderna. Marco Antônio repetiu, com excesso de habilidade, e em diferentes vezes, que Brutus e Cassius "são todos homens honrados, naturalmente". A mensagem - que parecia positiva - logo se converte em negativa. O bordão logra conduzir a multidão à fúria irresponsável. E mais revoltado fica o povo com o fecho da alocução: "Bons companheiros, gentis companheiros, não me permitam agitá-los, até uma súbita erupção de revolta. Aqueles que cometeram este ato são cidadãos honrados".

Igual técnica de persuasão negativa é adotada na peça "Otelo" onde Iago assume a condição de personagem sórdido, maquinador e depravado na tentativa de levar o mouro a concluir que Desdêmona, sua esposa, seria capaz de o trair com Cássio.

Com descomedimento das bolhas, convertidas em palavras delicadas, suaves, afetuosas, não se percebe o lado sombrio e sinistro da fala e da mensagem odienta. Iago consegue implantar em Otelo a semente ou germe da discórdia e até mesmo do ódio. Logra o infame: a capacidade de persuadir o ouvinte de que, embora seja um homem rude, é um cidadão íntegro, incorruptível e que odeia fazer conjecturas erradas acerca do outro.

Por tudo isso e por mais que eu me confesse grande admiradora dos escritos domingueiros de Gustavo Krause; embora eu me declare uma espécie de tiete da inteligência do ex-governador, discordo de parte da frase que ele escreveu no domingo 07 de julho: "O País... resistiu...ao modo reacionário, corrompido de fazer política e à polarização com reais ameaças à democracia". Krause parece haver deletado o passado e talvez o futuro. Basta ler a versão dos irmãos Grimm e os textos fantásticos de Shakespeare. É indispensável, também, escutar com atenção o que se divulga na mídia. Logo perceberemos que até o silêncio mandatório, justificado e forçado constitui a forma indigna de avaliar a quem se arruinará em cada balbucio. Basta lançar o olhar no rosto sem capacidade de revelar o mistério que assombra. Basta lançar um olhar nas mãos pensas e no corpo rígido, embora fatigado.

Penso que a palavra "resistência", usada por Krause, não possui o mesmo significado de "resistente" (duradouro, forte, inabalável, sólido, tenaz). O próprio articulista faz referência a um "politicamente correto" que passou a enodoar as obras de Monteiro Lobato. Por isso, tratando-se de democracia, enquanto perdurar a incerteza, o mistério, o segredo, a prevalência dos interesses individuais e grupais persistirão o medo, a dúvida a desesperança. As verdadeiras democracias - aquelas que não são relativas - rejeitam erupções graves, condenam a corrupção, manipulação, embuste e frases nebulosas. Ainda estamos nessa fase, infelizmente. Louvemos, apesar disso, a visão otimista de Krause. No meu caso - pessimista incorrigível - prefiro pensar como Drummond: "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente".

Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em Direito pela FDUL

 

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