Não imaginava fosse eu entoar uma seqüência interligada de conversas, depois de notas sobre como se tratar de 'comunismo' nos tempos atuais. Pois bem, sigo no trabalho arqueológico de revisitar conceitos insistentemente caros a quem ainda dá asas à profecia de Marx de superação do capitalismo e passagem à anulação da propriedade privada e ao socialismo.
Deixei, desde meus 20 anos de idade, de alimentar tal crença e ressalto a contribuição de Marx na interpretação da recorrência de crises, algo inato ao funcionamento do capitalismo. Por outro lado, a categoria "luta de classes", embora ainda útil à Sociologia e à Política, já era - em pleno século 20 - um conceito em vias de superação; seja para a política ("revolução socialista"), seja como instrumento de análise da sociedade.
Trata-se de termo que, como o antagônico "burguesia", permanecerá sendo alardeado por grupos de esquerda neste "novo" mundo. E o que veio depois de Marx, descambando para tiranias, não deve ser posto a débito desse pensador iluminista, e sim às construções lenistas-trotskistas-stalinistas e ao maoísmo. A "temporária" ditadura do proletariado tornou-se ditadura de castas. Em termos de herança, esse filósofo (e economista) permanecerá sendo uma referência para a evolução do conhecimento, acompanhado de outros grandes pensadores. Ademais, um dos legados de Marx é a utopia da sociedade fundada na igualdade comunal - para uma minoria de crentes. A realidade, teimosa, semeia distopias.
Essa minha forma de pensar veio se gestando desde os anos 1970 e foi com curiosidade e satisfação que, há dez anos, pus os olhos em "Karl Marx - A Nineteenth-Century Life" (Jonathan Sperber, Liveright Publishing Corporation. 2013. New York; London). O título desta biografia me pegou, ao focar Marx no seu tempo (vida pessoal, contexto e trajetória intelectual, disputas políticas). No entanto, daí não extraio - diretamente - conteúdo para as reflexões a seguir; a biografia contém apenas três referências ao termo "proletariado", conforme o respectivo índice analítico. Trata-se de leitura proveitosa de uma obra que contou - inclusive - com acesso à "total edition" dos escritos de Marx e Engels [MEGA], material disponível a partir do final dos anos 1990. Como tantas outras de amplo espectro, trata-se de fonte para consultas e para reinterpretação do que hoje se vive.
Para o que me interessa assinalar, alinhos os pontos a seguir. 1: Proletariado, a classe trabalhadora, é categoria analítica do século XIX, com sobrevida até a maior parte do século XX. 2: Indústria, base do proletariado de Marx, é hoje atividade minoritária em termos de contingente de assalariados. 3: Assalariados de comércio e serviços são o contingente dominante. 4: Os assalariados industriais são, na verdade, a "camada superior" dos trabalhadores e os sindicatos são atores políticos com interesses corporativos, sem organicidade para promover rupturas. 05: O resto da massa trabalhadora e de trabalhadores não-assalariados compõe universo heterogêneo e disforme, uma parte chegando a ser um novo "lumpen-proletariado". A chamada classe trabalhadora "revolucionária" inexiste, particularmente no Brasil.
Melhor atentar às evidências de que, desde final dos anos 1980 e início dos anos 1990, o mundo convive com duas grandes rupturas: enterro do "socialismo" e emergência do paradigma da eletrônica. Novo mundo, contexto bem diferente, com desmesurado poder do capital financeiro. Pleno de ineditismos. Na questão ambiental, no plano social, na esfera política.
Os movimentos de protesto neste novo mundo (Primavera Árabe; Occupy Wall Street; Junho de 2013 no Brasil; Coletes Amarelos, na França), todos com mobilização à base de eixos de comunicação via redes sociais, são fatos com inédita configuração. Melhores condições de trabalho e de vida, liberdade, basta à corrupção, cidadania - variados e dispersos interesses com configurações nacionais distintas. Nada a ver com socialismo, com "revolução proletária".
E um tempero perturbador: a emergência dos chamados "Black Blocs", agrupamentos que podem ser de direita, ou anarquistas, ou esquerda radical, que apimentam manifestações de rua (com bombas, incêndios, depredações de equipamentos públicos e privados); estranhamente, ainda sem pistas sobre origem e formas de financiamento.
Não há lugar para certas inutilidades teóricas, neste mundo que não é plano, é mundo em que a maioria é sem eira nem beira. Que tal um samba? (Com cachaça, claro).
Tarcisio Patricio, doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.