OPINIÃO

De Elis Regina à Madonna: a proteção do direito à imagem e voz post mortem

É certo reconhecer que, não havendo manifestação expressa da pessoa em testamento, declarando não consentir com a reprodução de sua imagem por meio de hologramas ou, ainda, outras inteligências artificiais existentes ou futuras, caberá aos familiares legitimados pelo Código Civil o direito de autorizar, proibir e pleitear indenização por danos morais.

LUÍS HENRIQUE AZEVEDO
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LUÍS HENRIQUE AZEVEDO
Publicado em 20/07/2023 às 0:00 | Atualizado em 20/07/2023 às 12:10
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Uma das maiores intérpretes da música brasileira, Elis Regina morreu em janeiro de 1982, com apenas 32 anos - FOTO: Divulgação

A propaganda comercial da Volkswagen para comemorar os 70 (setenta) anos da montadora, buscou fazer um paralelo entre os modelos mais antigos e os mais tecnológicos da marca. A partir daí, a publicidade se desenvolve sob o dueto de mãe falecida e filha viva, viabilizado por meio da inteligência artificial denominada como deep fake que, de forma objetiva, projeta as feições de Elis, a partir de fotos do arquivo da cantora, no rosto de uma "dublê", além de remasterizar a canção já gravada pela cantora em 1976.

Apesar de toda a emoção causada em boa parte da população e na própria filha de Elis, o comercial gerou uma série de discussões quanto a ausência de regulação da questão no Brasil, e até mesmo uma representação ética pelo CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, por supostamente confundir crianças e adolescentes, em razão da utilização de inteligência artificial para "reviver" uma cantora já falecida.

Quanto à ausência de regulamentação da questão no Brasil, não restam dúvidas que é uma preocupação legítima, tendo em vista que nos últimos anos o Poder Judiciário precisou combater com veemência a difusão de fake news, especialmente no âmbito eleitoral.

Essa preocupação não está atrelada exclusivamente ao comercial protagonizado entre Elis e Maria Rita, mas sim a utilização da inteligência artificial como um todo. É possível que uma nota indicativa de utilização de tecnologias artificiais antes do início ou ao final do conteúdo, pode ser um norte para promover uma maior transparência aos consumidores telespectadores e, assim, combater a desinformação.

Por outro lado, quanto à representação ética do CONAR, não se verifica a possibilidade de causar confusão entre crianças e adolescentes, especialmente porque, em razão da saudosa Elis ter partido há mais de 40 (quarenta) anos, é verdadeiramente impossível que uma criança (menores de 12 anos) ou adolescente (de 12 a 18 anos) tenha conhecimento da existência e da carreira de Elis Regina, por outra via que não seja a de seus pais e avós, com a explicação de que se tratava de uma cantora de MPB já falecida.

Outro ponto sensível em meio a tais discussões se apega até mesmo ao posicionamento ideológico que distanciava Elis Regina da Volkswagen. Enquanto a cantora e Belchior, compositor da canção interpretada por Elis, manifestavam-se expressamente contrário ao regime ditatorial no Brasil, a montadora chegou a apoiar a ditadura e, mais recentemente, acenar de forma pacífica ao governo Bolsonaro, o que gerou alguma revolta em fãs da cantora, sob a justificativa de que o comercial da montadora estaria violando a memória de Elis.

Mas afinal, a quem cabe decidir sobre a utilização de imagem e voz das pessoas já falecidas? O Código Civil dedica um capítulo inteiro aos chamados Direitos de Personalidade, ao que se incluem o direito à imagem e à voz. Enquanto viva, a própria pessoa é quem tem a legitimidade de consentir sua reprodução e divulgação - inclusive para fins comerciais -, bem como de pedir as providências cabíveis no âmbito cível e criminal, quando se deparar com uma ameaça ou lesão concreta a tais direitos, incluindo-se a possibilidade de pleitear indenização por danos morais.

A questão torna-se um pouco mais complexa a partir do falecimento do titular de tal direito. No caso concreto, a partir de 19 de janeiro de 1982, quem passou a ter legitimidade para tutelar os direitos de personalidade advindos da vida e carreira de Elis Regina? O Código Civil é taxativo ao referir que cabe ao cônjuge sobrevivente, aos genitores, descendentes, irmãos, tios e primos, a legitimidade para tomar as providências cabíveis para proteger os bens da personalidade daquele familiar falecido.

Dessa forma, para utilizar as imagens e voz de Elis Regina, a agência de publicidade responsável pela criação do comercial deve ter contado com o consentimento expresso dos familiares de Elis. Prestado o consentimento pelos familiares legitimados pela Lei, não há fundamento para se questionar a legalidade ou eticidade da utilização da imagem de pessoa falecida em propaganda comercial.

Questão similar é o que deve estar ocorrendo com o único filho da cantora Marília Mendonça que, após o falecimento precoce, vem percebendo os frutos dos direitos autorais advindos dos 3 (três) álbuns lançados após o trágico falecimento da rainha da música sertaneja no ano de 2021.

Em sentido contrário à "ressurreição" de Elis para participar do comercial da montadora, nesta última semana foi difundido entre os jornais do mundo a notícia que Madonna, após se recuperar de uma grave infecção, alterou seu testamento para proibir a utilização de hologramas, após a sua morte.

Havendo disposição expressa da pessoa por meio de testamento, de que não deseja ter sua imagem, voz ou outro direito de personalidade reproduzido desta ou daquela maneira, a legitimidade dos familiares fica condicionada e limitada à manifestação de última vontade do falecido, isto porque, com a morte, não há a transmissão de direitos personalíssimos aos herdeiros, apenas se reconhece a legitimidade dos familiares para proteger os possíveis direitos ou eficácia de direitos, que ainda se prolonguem para além da morte da pessoa.

Dessa forma, é certo reconhecer que, não havendo manifestação expressa da pessoa em testamento, declarando não consentir com a reprodução de sua imagem por meio de hologramas ou, ainda, outras inteligências artificiais existentes ou futuras, caberá aos familiares legitimados pelo Código Civil o direito de autorizar, proibir e pleitear indenização por danos morais.

Apesar das críticas disparadas nas redes sociais e da representação do CONAR face da Volkswagen, não se pode negar a emoção provocada pelo reencontro, ainda que artificial, entre mãe falecida e filha viva, que ao tempo em que ambas estavam vivas, não tiveram oportunidade de dividir o palco, tendo essa preciosa oportunidade sido proporcionada pelo uso de inteligência artificial, que permitiu à Maria Rita e aos telespectadores aquecerem o peito ao prestigiar um dueto que transcende a compreensão ordinária de morte e vida.

Luís Henrique Azevedo, advogado no Martorelli Família e Sucessões, pesquisador em direitos de personalidade post mortem

 

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