Retornando ao relevante tema sobre a criação do Juiz das Garantias, que viu-se aprovado pela Lei Federal nº 13.964/2019, que entrou em vigor em 23.01.2020, cujo assunto já foi objeto de comentários anteriores neste JC, vale relembrar que aquela reforma introduziu vários dispositivos ao nosso Código de Processo Penal de 1941, norma penal que ao longo dos anos vem sofrendo constantes alterações, passando despercebido aos olhos dos nossos legisladores, infelizmente, a urgente necessidade de discutir e aprovar um novo Instrumento Processual, ao invés de privilegiar reformas pontuais, como têm sido costumeiramente realizadas pelo Congresso Nacional. Em verdade, o atual Código de Processo Penal aprovado em 1941, através de Decreto Presidencial, durante a ditadura Vargas, contém normas autoritárias e arcaicas, em decorrência da sua forte e nefasta influência nazifascista, na época da sua aprovação, sem contar que de há muito é de extrema necessidade oferecer à nação um novo texto processual penal condigno com a nova realidade social e com o desenvolvimento técnico-científico que a cada dia torna-se mais criativo, modernizador e progressivo.
Criticado e exaltado por muitos juristas, o Juiz das Garantias surgiu para suprir a ausência de um magistrado, na fase de investigação criminal, que pudesse exercer o controle judicial de todos os atos praticados pelos agentes responsáveis pela investigação criminal, acima de tudo no afã de preservar os direitos e garantias individuais que devem ser obedecidos em favor de todos os investigados, indistintamente. Esses direitos e garantias estão expressamente previstos no art. 5º da Constituição Federal. Desde a vigência do Código de Processo Penal de 1941 e até antes dele, a investigação criminal no Brasil, que hoje é realizada pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público, através do inquérito, tem natureza inquisitorial, ou seja, não há necessidade de observância da ampla defesa e do contraditório, e os juízes criminais só atuam na investigação quando são chamados a intervir. Com a criação do Juiz das Garantias, o magistrado passa a acompanhar, de perto, todos os atos praticados durante a investigação, portanto, realizando um severo controle dos atos praticados pelas autoridades investigatórias. Ao invés de um único juiz com atuação na investigação e no processo penal, haveria dois magistrados diferentes: um atuando na investigação e um outro na fase processual.
No atual sistema inquisitorial, qualquer pessoa do povo pode estar sendo investigada criminalmente sem ter conhecimento dos fatos. Criado o Juiz das Garantias, a autoridade investigatória passa a ter a obrigação do comunicar sobre a abertura da investigação ao magistrado e ao próprio acusado, evitando, assim, que o investigado sofra o constrangimento de desconhecer os fatos que deram origem à investigação.
Ocorre, todavia, que antes da vigência da lei que criou o Juiz das Garantias, o ministro Luiz Fux, liminarmente, suspendeu todas as regras relativas ao assunto, entendendo, na época, que a sua criação implicaria em graves atribuições para o Poder Judiciário, principalmente no tocante ao imenso abalo nos seus recursos financeiros, já comprometidos com os custos imprescindíveis para a sua atuação jurisdicional. De fato, muitos sustentam que a criação do Juiz das Garantias, em todas as Comarcas do País, levaria o Poder Judiciário da União e dos Estados a uma situação de crise institucional, pela falta de recursos financeiros para a sua implantação e funcionamento.
Recentemente, antes do recesso forense, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento de mérito das ações diretas de inconstitucionalidades 6298, 6299, 6300 e 6305, quando o ministro Fux, relator, decidiu que "o juiz das garantias presume, sem base empírica, a parcialidade do magistrado que atuou durante a investigação para julgar a ação penal. Dessa maneira, viola o princípio da proporcionalidade. Além disso, o mecanismo interfere na estrutura do Judiciário e sua criação só poderia ter sido proposta por esse poder". Em síntese, Fux acatou a inconstitucionalidade do Juiz das Garantias, ao argumento de que todo juiz é imparcial e que o projeto de lei deveria ter sido encaminhado pelo Poder Judiciário e não apresentado pelo Parlamento, como efetivamente aconteceu. Entretanto, o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli e, portanto, deve-se aguardar o retorno do julgamento nas primeiras semanas de agosto próximo.
Fux equivocou-se em vários pontos em seu voto de mérito, que não caberia analisá-los, todos, neste espaço. O que é notório é que que as regras que dizem respeito ao Juiz das Garantias têm natureza eminentemente procedimental e, por isso, não dependem de iniciativa do Poder Judiciário. Imagine se o Código de Processo Penal para ser reformado dependesse de iniciativa dos nossos Tribunais?
Ninguém tem dúvidas, porém, que com a criação do Juiz das Garantias representaria, pela primeira vez na história brasileira, a presença de um juiz com a missão exclusiva de exercer um controle rígido de legalidade das investigações criminais, já existente em outros países, em preservação aos direitos e garantias individuais que estão descritos na Constituição Federal de 1988, mas que tantas vezes são vilipendiados pela ausência desse controle jurisdicional direto.
A falta de recursos financeiros para a sua implantação, um dos fundamentos do ministro Fux para recusar a criação do Juiz das Garantias, com efeito, traduz uma nítida e antiga constatação de que as nossas grandes conquistas institucionais (juizados especiais, medidas cautelares substitutivas da prisão e as audiências de custódia, por exemplo), sempre dependeram de vontade política e do desejo de consagrar uma Justiça Criminal humanizada e coerente com os direitos e garantias individuais, que devem ser assegurados, preservados e controlados pelo Poder Judiciário, independentemente da sua condição financeira. A criação do Juiz das Garantias, em resumo, representa uma mudança na organização judiciária da União e dos Estados, é dizer, será uma simples separação de função, e não importará na criação de um novo cargo ou de uma nova instância judicial, como Fux entendeu.
Adeildo Nunes, juiz de Direito aposentado, professor, advogado criminalista, mestre e doutor em Direito de Execução Penal, sócio do escritório Nunes & Rêgo Barros - Advogados Associados