Assistir ao noticiário online produz emoções intensas, algum prazer e longo sofrimento. Estas contradições fazem parte dos efeitos decorrentes das grandes inovações.
A tragédia universal se senta ao nosso lado e cruamente mostra seus afazeres diabólicos. Da mesma forma, exemplos da bondade humana e solidariedade universal, também, mostram sua face generosa e demonstram que o amor ao próximo é possível.
Nas últimas semanas, o mundo inteiro viu a fumaça tóxica dos incêndios florestais adoecer e vitimar populações inteiras próximas ou distantes de eventos devastadores. As consequências não param por aí. A dolorosa perda de vidas deixa feridas que jamais cicatrizam; o comprometimento da qualidade de vida prossegue como uma epidemia em recesso pronta para o ataque contra seres debilitados. E o fogo, transformador de eras, segue o caminho traçado pela Natureza ou, como obra perversa do empreendimento humano, acende e se propaga tracionado pela religião do crescimento econômico a qualquer preço.
Ao mesmo tempo, áreas outrora temperadas e, mesmo gélidas, não somente destroem a cadência inspiradora das Quatro Estações da genialidade musical de Vivaldi, como esquentam, ardem, explodem os termômetros e transformam comunidades e cidades inteiras em fornos assustadores.
Enquanto o gelo derrete e os incêndios agigantam-se, a crise climática, mais uma crise de proporções globais, confirma ameaças à sociedade da riqueza abundante de poucos e o medo de todos nós.
Segundo a Organização Meteorológica Mundial, foram registradas ondas extremas de calor nos EUA, Europa e Japão, acima de 40ºC, prevendo a possibilidade de 54ºC na Califórnia. Quanto às enchentes, não precisa ir a Coreia do Sul, vários estados brasileiros sofreram com a calamidade das chuvas e ciclones em diversas regiões, castigando fortemente os mais pobres.
Ao usar o título, "O Dilúvio e as Labaredas", não me aproprio de convicções teológicas ou sonhos pavorosos do fogo confirmando previsões sobre o mistério do fim do mundo. Apenas, refuto o negacionismo, para reafirmar minha crença de que ingressamos na era geológica do Antropoceno e, consequentemente, na capacidade adquirida pelo homem de viver em harmonia com a Natureza ou degradá-la a tal ponto de aniquilar sua própria existência.
A partir dos anos setenta, foi formalmente (Relatório Meadows, 1968) declarado que existiam limites para "a religião do crescimento". Pensamento minoritário, - a ecologia política ou a bioeconomia - na época visto, no mínimo como extravagante, hoje forte e crescente, demonstrava os limites biofísicos (Nicholas Georgescu-Roegen, [1906-1994]) dos recursos naturais da Terra para a aventura desmedida da expansão econômica.
No campo das ciências naturais, a corrente negacionista atribui os eventos à dinâmica própria da natureza independente da ação antrópica. Não há, para seus adeptos, comprovação científica da emergência.
No campo das ciências sociais, os economistas passaram a internalizar os custos ambientais e, lastreados na inovação tecnológica, gestaram o conceito de Sustentabilidade.
Por sua vez, a ecologia política ou a bioeconomia têm hoje um respeitável prestígio intelectual ao propor modelos alternativos que questionam a noção de crescimento contínuo como motor da sustentabilidade. O Pós-Desenvolvimento assume uma visão multidisciplinar que valoriza padrões civilizatórias fundados na paz, no comedimento, na qualidade de vida, na solidariedade, na alteridade, na cooperação, na força do localismo, tendo como vetor político a cidadania ativa do regime democrático.
É um debate necessário em busca de convergências urgentes. Cabe a pergunta: é apenas utopia ou uma utopia concreta na concepção de Ernst Bloch para o Século XXI?
Com a palavra Manuel Castells (1942): "Nosso argumento é o seguinte: as práticas econômicas são práticas humanas determinadas por seres humanos que encarnam seus modos de ser, de pensar seus interesses valores e projetos [...] A economia não apenas se relaciona com a cultura: a economia é cultura" (Outra economia é possível - cultura e economia em tempos de crise. Ed. Zahar: Rio de Janeiro, 2019).
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco