Opinião

Insensatez

Divórcio, partilha de bens, pensão alimentícia, divisão da guarda, todas essas questões têm como atores casais e os filhos que, juntos, produziram

GISELE MARTORELLI
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GISELE MARTORELLI
Publicado em 27/07/2023 às 17:52
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A decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça pode tornar ainda mais revolta essa matéria que é feita não apenas de leis, mas de nervos expostos e sentimentos em ebulição - FOTO: Istock

Quem navega pelo direito de família conhece bem as tempestades que transformam um ambiente, anteriormente seguro, em caos. Divórcio, partilha de bens, pensão alimentícia, divisão da guarda, todas essas questões têm como atores casais e os filhos que, juntos, produziram. Interesses que deveriam permanecer comuns, a despeito da dissolução do antigo formato nuclear, tornam-se, repentinamente, motivos para contendas. Não raras vezes, os conflitos evoluem para rompimentos afetivos irreparáveis. A decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça pode tornar ainda mais revolta essa matéria que é feita não apenas de leis, mas de nervos expostos e sentimentos em ebulição.

Embora o art. 447, § 2º, inciso I, do Código de Processo Civil determine que os descendentes, em qualquer grau, estão impedidos de depor como testemunhas por presunção de parcialidade, O STJ, em votação unânime realizada em junho de 2023, determinou que filhos poderão, sim, testemunhar contra ou a favor das figuras parentais em processos de divórcio.

A decisão da corte superior parte do pressuposto de que os filhos "não estão impedidos de atuar como testemunhas no processo de divórcio dos pais, por possuírem vínculo de parentesco idêntico com ambas as partes e não apenas com alguma delas, como prevê o dispositivo". A falsa equivalência explicitada pela justificativa lembra momentos da infância de muitos de nós, quando, em tom de brincadeira, éramos confrontados: “Você ama mais a mamãe ou o papai?”. A resposta correta, fosse ela autêntica ou não, era: “Amo os dois, igual”.

Em qualquer contexto imaginado, a imparcialidade é algo inatingível, porque somos movidos por forças que nem sempre são conscientemente decodificadas, sejam elas sociais, culturais, morais, religiosas ou, em resumo, identitárias. Considerar que um indivíduo, mesmo em sua tenra idade, pratique a neutralidade em nome de um amor geneticamente devido em proporções iguais é muito mais uma crença, ou um desejo, do que, propriamente, a realidade.

A exposição dos filhos no cenário de uma Vara de Família, onde se decidem os casos litigiosos de divórcio, é dramática por si só. Convocá-los a declararem, perante uma plateia, suas preferências sob o disfarce da isenção é não apenas invasivo como passível de acarretar graves consequências, internas e externas, presentes e futuras.

Filhos são, sim, em muitas situações, testemunhas sofridas e involuntárias das queixas e rancores que inundam o barco do casamento muito antes de ele afundar. Nesse “salve-se quem puder”, tomar partido nem sempre é uma tradução literal de amor e desamor, senão uma forma de se agarrar ao que resta de solidez. Vitimizá-los novamente é insensatez.

Gisele Martorelli, advogada especializada em sucessões e direito de família.

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