Opinião

O placar não importa

Nos jogos da VIII Copa do Mundo, cada gol transcende emoções: é o momento da celebração que confirma mais um passo na libertação feminina para o pleno exercício do papel social da mulher

GUSTAVO KRAUSE
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GUSTAVO KRAUSE
Publicado em 29/07/2023 às 18:09
Thais Magalhães / CBF
Nós brasileiro, por seis vezes, tivemos a alagoana Marta Vieira eleita a melhor jogadora do mundo - FOTO: Thais Magalhães / CBF

As mulheres venceram o Preconceito Futebol Clube. Mais uma vitória histórica, porém incompleta. Medindo a desigualdade com o termômetro financeiro vale lembrar, segundo testemunho da ex-atacante da nossa seleção, Roseli, que na primeira edição da modalidade, em 1991, as convocadas ficavam sem receber. No relato bilionário da Forbes, persiste a desigualdade: Alex Morgan (San Diego Wave FC) e Megan Rapinoe (SeattleReign FC) recebem cada uma os maiores salários do futebol feminino US$ 5,7 milhões por ano e Cristiano Ronaldo(Al-Nassr) US$ 136 milhões.

Vão continuar vencendo a mais antiga, persistente e institucionalizada discriminação da história: a opressão masculina.

No Brasil, um tal José Fuzeira, em maio de 1940, escreveu uma carta pública à equipe ao governo Vargas alertando para os graves prejuízos provocados pela prática do futebol à saúde das mulheres. Parece incrível, mas o alerta idiota gerou o Decreto-Lei 3199/1941 da era Vargas e proibiu as mulheres de praticarem esportes que não fossem “adequados a sua natureza”. Revogado em 1979, o futebol feminino foi regulamentado em 1983.

Nos jogos da VIII Copa do mundo, cada gol transcende emoções: é o momento da celebração que confirma mais um passo na libertação feminina para o pleno exercício do papel social da mulher.

No futebol, o espaço se mostrava uma alternativa aparentemente inacessível à capacidade feminina de jogar e jogar em alto nível por conta de dois preconceitos: o estrutural, as jogadas ríspidas pareciam contrariar os atributos da docilidade e da leveza a partir da advertência que “futebol é para macho, deixa de frescura”; e o funcional, desenvolver habilidades com a relação conceber/executar o passe, o drible, a caneta, o rabo de vaca, o chapéu, a ginga, o bate-pronto, jogadas variadas decorrentes de uma intimidade com a bola estranha às aptidões da mulher.

Completo engano. O registro binômio bola/boneca que dividia a felicidade do menino e da menina não significava um hábito insuperável. O mundo mudou. Os estudiosos, pesquisadores e lideranças esclarecidas apontaram novos padrões de comportamento.

Neste sentido, o livro, AS MULHERES NO UNIVERSO DO FUTEBOL BRASILEIRO (organizado por Cláudia Samuel Kessler, Leda Maria Costa e Mariane da Silva Pisane – Editora UFSM SANTA MARIA, RS, BRASIL, 2020), composto por 17 textos acadêmicos multidisciplinares e uma entrevista, ilumina novas realidades.
Um dos textos que mais despertou minha curiosidade revelou, entre outras características, a resistência heroica de meninas nascidas e criadas no interior da Bahia, cidade de Jequié. Venceram a supremacia machista quando se dedicaram à recreação das “babas”, equivalente do “baianês” à “pelada” dos moleques brasileiros.

A história é longa (década de 70), um quase romance do vigor feminino aliado ao afeto de homens sensíveis que acolheram as meninas maliciosamente chamadas de “macho-feme”.

A então pacata Jequié foi um dos berços do futebol feminino no Brasil. Os personagens fundamentais que brincavam de correr atrás da bola, vibrar com o gol e maldizer a derrota prenunciaram o fenômeno mundial chamada Marta.

O pálio protetor e incentivador foi José Sampaio que formou um time de meninas (ele era pai de cinco filhos homens) e, dentre elas, cabe destacar Maria da Conceição Araújo, a Conça, nascida em Itapitanga, desde bebê morou em Jequié e foi uma das pioneiras em ocupar os terrenos baldios para as “babas”, tendo como companheiras Maria Neide Cruz Sampaio, Suely Morbeck Ribeiro, Nara Rubia Muniz Chaves Ribeiro, a Nara, numero 10 do time e se autodefinia “driblava pra caramba”.

“Jogadoras desbravadoras” e tantas outras que, submetida aos padrões preconceituosos, cumpriram um notável papel de abrir caminhos que desmentiram incapacidade feminina genética de se tornar uma craque da bola.

Nós brasileiro, por seis vezes, tivemos a alagoana Marta Vieira eleita a melhor jogadora do mundo, despedindo-se dos gramados a atual Copa do Mundo.

Merece nossa homenagem e gratidão. Em 04/10/07, encantado com estilo das jogadoras e admirador de Marta, publiquei um artigo em sua homenagem, agora repetido com inspiração cabralina: “Marta nasceu para ‘uma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trintas, de embocada antes dos vinte, de fome um pouco por dia’”.

Marta contrariou o destino. Tem a resistência do mineral. Foi educada pela pedra, adquiriu a leveza da flor, a velocidade mercurial dos pés alados e transformou o corpo franzino na funda de David.
Marta fez história como artista e líder de uma revolução que está mudando o mundo para um lugar em que a união, a solidariedade e a coragem sejam os valores de bem viver e saber conviver. O placar não importa.

Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco

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