Quando eu era miúda, mesmo vivendo do imaginário., eu intuía o sentido secreto nas coisas. Brincava o carnaval jogando confetes, serpentinas e lança-perfume com embalagem dourada e de metal. Passava o dia no corso em carros abertos conduzindo crianças, adolescentes e adultos jovens. Os mais "fatigados" ficavam sentados nas calçadas das suas casas para ver os blocos e pular um bocadinho até à esquina seguinte. Nesse tempo, Pernambuco não tinha 5 das 50 cidades com maior taxa de mortes violentas do País, não havia 832.295 detentos no Brasil, não se governava com jatância e ostentação, a democracia não estava assentada no abuso de poder e o Direito Penal era a derradeira ferramenta usada contra os cidadãos.
Quando eu era criança, a Semana Santa era coisa séria. O jejum de carne era um preceito e costume sem transgressão. Missa seguida de comunhão e almoço com reza. Peixe e bacalhau enfastiando o estômago pelo exagero ou abuso.
Quando eu era menina, o São João era comemorado com grandes fogueiras para assar o milho e dançar a quadrilha. O milho era ralado para o preparo da canjica que levava duas horas sendo mexida no fogo até engelhar e não babar no dia seguinte. Passada essa quadra, era a expectativa de dezembro. As crianças da classe média vestiam seus vestidos de organdi com anáguas engomadas e com laçarotes nas costas. As famílias não perdiam a "Festa da Mocidade". Havia também o pastoril - conhecido como forma de expressão secular, representando o confronto ou antagonismo entre cristãos e mouros nas lutas travadas na Península Ibérica para conversão dos infiéis ao catolicismo. Supomos que a origem do nosso pastoril seja portuguesa - os autos portugueses antigos (a lapinha e o pastoril propriamente dito e, depois o "auto do presépio"). No Recife, grupos vestiam-se nas cores vermelho (mestra) e azul (contramestra). A Diana trajava as duas cores. A presença do anjo era essencial porque anunciava a vinda do menino Jesus.
Quando eu ainda era garota, tinha uma coleção de luvas de crochê trançado pela minha avó. As luvas eram enfiadas nas duas mãos para o passeio com as amigas na Rua Nova. Em frente à Igreja da Conceição dos Militares se reunia um grupo de intelectuais liderados pelo Prof. José Brasileiro Villanova. Passávamos rindo pela calçada e entrávamos na Sloper para ver ou comprar brincos e outras bugigangas. Tudo isso antes do nosso chá na Casa Mattos ou do sorvete no Gemba. Na memória, não carrego incidentes de mortes por balas perdidas. Andávamos livres, leves e soltas.
Quando eu era adolescente acompanhei, na década de 60, o florescer da indústria cultural brasileira. Vários conglomerados empresariais se formaram exercendo enorme influência e relevância no cenário político. Vibramos com a inauguração das duas primeiras emissoras de televisão do Recife: TV Jornal do Commercio e TV Rádio Clube de Pernambuco. Mas a vida, com seus imbróglios, baterá de frente com "os idos de março" assinalando as celebrações da deusa romana Perenna. E não foi Júlio César a causa de tudo. Foi o golpe militar. Mas, ainda perseverava em mim o desejo de cantar "era um garoto que como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones"... Não fui mandada para o Vietnã lutar com Vietcongs. Preferi escutar as guitarras de John Lennon, David Browne e Bob Marley. No Brasil, despontava o movimento da "Bossa Nova" e Maísa Monjardim ou Matarazzo era a grande musa da rebeldia.
Mas eu ainda rejeitava o "meu mundo caiu". Aos poucos, contudo, fui obrigada a aceitar o efeito dominó latino-americano, mesmo que ainda existisse a "festa de arromba" cantada por Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Afinal, toda arte - e a música em especial - tem a justa pretensão de ser democrática. Por isso era e é possível mesclar os aparentemente "imperturbáveis" com os "transgressores" dos séculos 20 e 21 - alguns com olhos secos e coração encharcado: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Betânia, Chico Buarque. Tom Jobim, Gal Costa, Vinícius de Moraes, Clara Nunes, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Ivan Lins, Martinha, Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Cazuza e muitos outros que suplicam espaço, caso de Marisa Monte e Adriana Calcanhotto, na década de 80.
No século 21 eu comecei a folhear velhas poesias. Esbarrei na "Confidência do Itabiriano": no tempo em que era jovem eu tinha tudo. Hoje sou apenas uma funcionária pública virando as folhas de um velho álbum bolorento de fotografias, outrora conhecidas pelo nome de retratos. "Como dói" saber que muitos já não podem dizer como Pessoa: "Na véspera de não partir nunca, ao menos não há que se arrumar as malas". O fato é que muitos já partiram e outros sabem que um dia as bagagens deixarão de ter serventia.
Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora e pós doutora pela Faculdade de Direito de Lisboa.