OPINIÂO

Mudanças, sim; mas nem sempre as mais desejadas

Dá pesadelos ver o passado recente e imaginar que futuro virá, se uma catástrofe climática (ou nuclear) não se antecipar e resolver os problemas existenciais do homo sapiens.

TARCISIO PATRICIO DE ARAUJO
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TARCISIO PATRICIO DE ARAUJO
Publicado em 01/08/2023 às 0:00 | Atualizado em 01/08/2023 às 8:15
LEO LARA / STELLANTIS
"O que foi proletariado (industrial) tornou-se minúsculo e heterogêneo coletivo sindical movido a interesses corporativos". - FOTO: LEO LARA / STELLANTIS

O esforço de "arqueologia" da saga 'socialista', que - sem planejamento - venho fazendo nos últimos nos últimos cinco sucessivos artigos, este incluído, tem base em revolvimento de minha biblioteca doméstica; um escarafunchar (obrigado, Millôr) de livros arrumados conforme o coração e preferências pessoais, sem o precioso auxílio de um bibliotecário. Coisa iniciada há cerca de dois anos, quando da mudança para o que deverá ser meu último endereço. Tarefa prazerosa: ler o que nunca foi lido; completar leituras parciais; reler o que me apraz; reforçar o pensamento crítico; e atentar para e-books acumulados no acervo guardado nas tais nuvens que tanto intrigaram a inquieta ex-presidente Dilma.

Tal escavação me trouxe revisita de obras que serviram à construção/refazenda do meu juízo sobre política, sobre a vida, sobre cidadania. Destaco uma - 'Qual Socialismo?', Norberto Bobbio (1976) -, pequeno (pouco mais de 100 páginas) e substancial livro que agora me serve neste exercício "arqueológico". De antemão, saliento: pode ainda ser útil tratar de aspectos por demais sabidos. E, no caso, isso se dá porque certas crenças, concepções e práticas sociais supostamente revolucionárias - no sentido de promover mudanças - sobrevivem a várias gerações, apesar da inviabilidade do alcance de tal propósito.

A volta ao livro de Bobbio deu-me puros prazeres. Um: relembrança de Iza Freaza (a respectiva tradutora), que produzia um dos meus textos preferidos nos jornais "alternativos" Opinião e O PASQUIM - ao lado de Millôr, Ivan Lessa, Paulo Francis, Henfil... Googlei e reencontrei Iza Freaza (75 anos, ex-guerrilheira, então companheira de Dilma na prisão), que publicou em agosto 2022 o livro 'O Coração do Rei', sobre Dom Pedro I, o rapaz de 23 anos que topou liderar a Independência do Brasil. Autora que então expressou o seguinte, indagada sobre a luta armada nos anos 1970:

"Terminamos derrotados, muitos de nós perderam a vida por nada". "Até hoje"... [não foi feita] "a reflexão de que pregávamos uma ditadura de esquerda" - coisa "terrível". "Muitos não queriam ver as denúncias que vinham da União Soviética sobre perseguições e mortes". E o arremate: "A democracia ainda é o caminho para construir vielas de idealização. Pode não ser perfeito, mas é a melhor forma de governo" (https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140328_depoimento_iza_salles_ditadura_fl). O que venho expressando nesta coluna tem perfeita sintonia com tal autocrítica.

Prazer dois. Eu havia dito, forma ligeira - no artigo anterior - que não cabia debitar a Marx a práxis da tirania que caracteriza a experiência de construção 'socialista'. Sem tempo para fundamentar o que dizia, lá deixei a sentença, mesmo ficando em dúvida ao lembrar-me de discussões políticas de Marx com alguns não-marxistas: severa e implacável critica contra os que se aproximavam de idéias "burguesas". Lênin e Trotsky não ficavam atrás, na catilinária dos bolcheviques contra os mencheviques. O que nas primeiras leituras eu "curtia" depois veio a me parecer certo autoritarismo. E, hoje, os mais aguerridos da esquerda costumam tratar os adversários com aparente superioridade moral, adjetivando o contendor "burguês" como "canalha". A ajuda para o que agora corrijo veio de Norberto Bobbio, ao tratar da "responsabilidade da teoria" e da responsabilidade de intelectuais em geral (p. 96): "Marx e seu amigo Engels zombaram do estado representativo, sustentaram que os estados" são necessariamente "ditaduras" e que "a passagem do estado burguês ao estado proletário seria simplesmente a passagem de uma ditadura a outra". Por outro lado, aprendemos que Marx profetizou que a ditadura do proletariado seria, no comunismo, superada pela sociedade comunal, sem classes. O Estado desapareceria. A História trouxe o CQD do fracasso de tal profecia. E me valho da modéstia dos sábios que Bobbio revela, ao indagar (p. 96): "Nós, pequenos, pequeníssimos, somos ou não somos responsáveis pelo que escrevemos? Claro que somos". E complementa: "Portanto, somos responsáveis e os grandes, que têm um auditório bem mais vasto e duradouro, não o são?". De fato, a ideia de ditadura do proletariado, materializada como ditadura de castas, mostrou-se semente de tiranias socialistas. Sim, Marx não deve ser isentado da contribuição para tal resultado.

Encerro a conversa de hoje com um adendo sobre classes sociais, conceito fugidio que, no século XIX, com as vestes de classe revolucionária (proletariado), parecia ter certo sentido - principalmente quando, seguindo Marx, se antevia o "paraíso socialista". Mudanças econômicas, sociais e políticas tornaram bem menos nítida a precisão sociológica a respeito do caráter "revolucionário" de classes, interesses de classes e conflito de classes. O que foi proletariado (industrial) tornou-se minúsculo e heterogêneo coletivo sindical movido a interesses corporativos. O tecido social tornou-se bem mais complexo, o que se agiganta depois da emergência da microeletrônica (1980-1990) e do panorama capitalista das últimas três a quatro décadas. O mundo é bem outro, sem dúvida. E assim fecho, com otimismo em viés de baixa: dá pesadelos ver o passado recente e imaginar que futuro virá, se uma catástrofe climática (ou nuclear) não se antecipar e resolver os problemas existenciais do homo sapiens.

Tarcisio Patricio, doutor em Economia e  professor da UFPE, aposentado

 

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