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OPINIÃO

Projeto Haussmann 3.0

Enquanto o capitalismo industrial funcionou com a repressão e a exploração, um novo regime de informações digitais explora a liberdade no lugar de reprimi-la: nós imaginamos que somos livres, mas nossas vidas são registradas a fim de que nosso comportamento possa ser controlado psicopoliticamente

JC
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JC
Publicado em 01/08/2023 às 0:00 | Atualizado em 01/08/2023 às 8:15
ISTOCK
Na era atual, informações são disseminadas rapidamente através da tecnologia digital, redes sociais, e turbinadas por algoritmos - FOTO: ISTOCK

A ideia de "sala de aula invertida", aquela em que o papel do professor se vê reduzido na relação pedagógica, para dar lugar aos meios digitais que atingem o aluno ali onde ele estiver, parece que vem ganhando novos contornos com a ideia de "digitalização escolar".

Nós conhecemos na história moderna da educação pelo menos uma "revolução copernicana" do pedagógico: aquela avançada por Rousseau e que ganhou corpo com a chamada "Escola Nova" (Dewey, Killpatrick), introduzida no Brasil pelas mãos de Anísio Teixeira, e que retirava o protagonismo do professor (do ensino) e o transferia para o aluno (o "aprender a aprender"). Vem agora, ao que parece, uma nova "revolução" em que, nem aluno nem professor detêm mais os papéis principais ou secundários, e sim, os meios digitais. Não se trata de um desdobramento do velho "tecnicismo pedagógico", denunciado, no passado por gente como, por exemplo, Dermeval Saviani, trata-se, agora de uma outra e insidiosa estratégia de subjetivação ultraindividualista com ares de liberdade pessoal. Com um pouco de ousadia conceitual, eu diria que se trata de novo programa de "haussmanização" do pedagógico. Tentarei explicar.

As agitações sociais que tomaram Paris em 1830 e 1848, sobretudo com a construções de barricadas nas estreitas ruas de uma cidade ainda com feições medievais, juntando móveis velhos, lixo, paralelepípedos arrancados das ruas, pedras... cortavam metaforicamente a cidade impedindo a ação das forças repressivas (Gavroche de "Os Miseráveis" morre numa barricada!). No Segundo Império (Napoleão III), que vai de 1852 até 1870, após o golpe do 18 Brumário, o prefeito de Paris, o Barão Eugène von Hausssmann (1809-1891) resolveu destruir literalmente a velha Paris medieval, estabelecendo os gabaritos de construção e abrindo os grandes "boulevards", fazendo da largura das avenidas empecilho para a construção de barricadas e facilitando o deslocamento da polícia para os "bairros vermelhos", onde se concentrava a massa de trabalhadores em constante efervescência política, naquele período que ficou conhecido como a "Primavera dos Povos".

Em 1968, as barricadas agora de estudantes voltaram, apesar de tudo! E novamente cortando simbólica e fisicamente a cidade. Ocorreu, logo depois, um novo projeto de "haussmannização", desta vez das universidades! A Sorbonne foi toda esquartejada e seus centros deslocados para a periferia da cidade (Nanterre, Saint Dennis...). Aqui mesmo, em Recife, nossas faculdades, institutos e escolas da antiga Universidade do Recife ficavam todas no centro da cidade serpenteada pela Av. Conde da Boa Vista, local das concentrações estudantis e das olímpicas batalhas campais contra a polícia. Nós também tínhamos nosso Quartier Latin e nosso Boulevard Saint Germain! A ditadura militar, agindo à la Haussmann, resolveu deslocar todos os campi para fora dos centros urbanos, distantes e de acesso dificultoso - visto os transportes coletivos de antanho- separando-os da cidade, modificando e dificultando a cartografia do protesto. Reurbanização e repressão política caminham juntas aqui! Se aquela revolução copernicana da Escola Nova, deslocara o processo pedagógico para o aluno, este mesmo aluno se tornara perigoso politicamente, uma força subversiva até então insuspeitada, e era preciso separá-lo da cidade, mesmo que estivessem todos juntos no mesmo lugar, a distante Cidade Universitária. O problema é que os "estudantes" e os "jovens", depois de 68, deixaram de ser uma categoria simplesmente etária ou pedagógica, para se tornarem uma categoria sociológica e política. Ameaça à vista!

Mas parece que agora, temos o "Projeto Haussmann 3.0"!

Utilizando-se do argumento de que o acesso aos campi, as dificuldades urbanas impostas pela tráfego e pela precariedade dos meios de transporte coletivo, aliado ao desenvolvimento de redes de interconexão digitais e acessíveis através de aparelho individuais e potentes, sugere uma nova estratégia que, aparentemente tem um efeito muito benéfico: a sala de aula invertida pode se realizar massivamente. E a universidade física, real, com prédios, com alunos e professores se encontrando e discutindo pode... fechar! Ufa! Finalmente aquele "ano que não terminou" (1968) vai, graças a Deus, terminar!

Ensino virtual, professor virtual, realidade virtual, livros virtuais (a Suécia está cancelando o programa de digitalização das escolas pelos péssimos resultados de aprendizagem!), alunos virtuais: vejam que economia de recursos, que controle sobre a atividade e os conteúdos pedagógicos, que vantagens ao mesmo tempo de suposta inclusão social e de vigilância política, que tranquilidade com alunos não contaminados por professores "doutrinadores", também vigiados... Alunos e professores individualizados e isolados politicamente e se sentido, finalmente, livres do "fardo da escola, repetitiva, discursiva e pouco prática"!

Enquanto o capitalismo industrial funcionou com a repressão e a exploração, um novo regime de informações digitais explora a liberdade no lugar de reprimi-la: nós imaginamos que somos livres, mas nossas vidas são registradas a fim de que nosso comportamento possa ser controlado psicopoliticamente. Os mecanismos do poder funcionam, não porque as pessoas são conscientes da vigilância constante (o "Sorria, você está sendo filmado!"), mas porque elas se pensam livres!

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e visitante da UFRPE

 

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