Dentro de mais alguns dias a UFPE estará comemorando os 60 anos da Rádio Paulo Freire (820 AM), fundada em 1963 pelo próprio Paulo Freire e que se chamava, originalmente, Rádio Universidade, e hoje coordenada por minha querida colega, a professora de radialismo Paula Reis, e concebida no interior do projeto mais amplo da chamada Extensão Universitária (Freire era diretor do SEC, Serviço de Extensão Cultural da antiga Universidade do Recife) sob o reitorado de João Alfredo da Costa Lima.
A criação de uma rádio que tinha como "slogan" UMA RÁDIO A SERVIÇO DA DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA, reflete de forma bastante eloquente aquilo que alguém já chamou de "Weltgeist" (numa tradução grosseira "Espírito de uma época"): aqueles anos 60 (assim como os "loucos anos 20" daquele século!) definiram um modo de vida, de fazer política, de reestruturação das relações intersubjetivas, de pensar, de rever o conceito de poder, de liberdade individual, de sexualiadade... que foram verdadeiros divisores de águas culturais. Havia um tipo de preocupação em nossa intelectualidade - hoje recolhida no interior das universidades e tendo como norma de conduta a "produtividade"! - que eu chamaria de uma "inquietação republicana".
O que vejo de verdadeiramente interessante nas ações de Paulo Freire naquela quadratura histórica é que, embora insistamos - com muita razão, claro!- em identificá-lo como "pedagogo-educador" (João Francisco de Souza), quer dizer, alguém que pensou a teoria no interior da prática e a prática no seio da teoria, precisamos ver, no entanto, que ele foi muito além do formulador de ideias pedagógicas: com sua pedagogia (do Oprimido) ele quis realizar um determinado conceito de "povo" que fora completamente negligenciado pela República e seus projetos educacionais: nós não tivemos um Condorcet, um Saint-Fargeau, um Lepeletier... interessados na constituição de uma noção política de POVO através da "instrução pública" e da "educação nacional"! Era essa a preocupação de Freire: mais do que propor uma pedagogia "libertadora" que se opusesse à objetificação do homem, tornado "massa", Freire também estava preocupado com a criação de um espaço público, ali onde pudéssemos realizar o que Kant chamou de "uso público da razão" (a possibilidade de expor publicamente as ideias e convicções e defrontá-las com as dos outros que, neste espaço, se tornam visíveis e audíveis). Freire queria, com o Serviço de Extensão (Rádio Universidade, Revista Estudos Universitários) e com sua pedagogia, dar uma resposta ao nosso republicanismo inconcluso e socialmente seletivo, buscando na própria "cultura popular" os elementos e predicados suscetíveis de "problematização", quer dizer, de um tipo de questionamento de nossa realidade social e de como a interpretamos e nomeamos, que pudesse expressar uma fala específica, a daqueles que vivem em regimes de opressão social e não dispõem propriamente da consciência e organização política capaz de agir em conjunto no interior desse mesmo social - um "social" agora tornado objeto de reflexão e de ação.
Recife, uma espécie de Atenas Tropical, tinha os seus "Péricles" nas figuras de Pelópidas Silveira e Miguel Arraes, com uma diferença importante: a Pólis ateniense estava reservada apenas a uma elite (Eupátridas) econômica e social, originários das Tribos e Genos fundadores da cidade e representando apenas 10% da população. Aqui, no Recife, o projeto era o de trazer as camadas historicamente excluídas dos processos culturais e educativos, que qualquer república séria permite, para o interior daquele espaço público de discussão, confronto, alteridade (o MCP, as Praças de Cultura, os programas de alfabetização, as apresentações públicas de teatro e música, o Teatro Santa Isabel como palco de discussão entre o poder e o povo.... Naquele momento e lugar se manifestava o predicado fundamental de nossa condição humana: a PLURALIDADE!
Comemorar os 60 anos de nossa Rádio Paulo Freire é, de fato, uma ação COM- MEMORATIVA (lembrar juntos): uma breve e radical tentativa de evitar o esquecimento daquilo que fizemos de nós mesmos no passado, que alguns grupos teimam em apagar de nossa memória histórica: uma época em que uma simples rádio de província, de alcance limitado, numa sociedade de analfabetos, procurou mostrar que a dignidade da pessoa humana só pode ser construída no interior de uma cultura partilhada, de um passado comum e enfrentado com coragem, onde nossa FALA (que uma rádio veicula e permite ser ouvida), pode, finalmente, assumir sua difícil e talvez inalcançável autenticidade.
(Para a professora Paula Reis)
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE