OPINIÃO

A guerra perdida

A descriminalização das drogas menos pesadas, especialmente a maconha, poderia diminuir o custo de manutenção de um grande aparato policial, jurídico e prisional, além de esvaziar o mercado negro, desorganizando parte da atividade criminosa.

Imagem do autor
Cadastrado por

SÉRGIO C. BUARQUE

Publicado em 16/08/2023 às 0:00 | Atualizado em 18/08/2023 às 15:33
Notícia
X

A guerra contra as drogas está perdida. Nas últimas décadas, o consumo não parou de crescer e o narcotráfico transformou-se num grande negócio multinacional, penetrando no tecido social das cidades e se espalhando pelo mundo. O assassinato recente de Fernando Villavicencio, candidato à presidência da República no Equador, pelo crime organizado (tudo indica que colombianos) é uma demonstração desta expansão das atividades criminosas vinculadas às drogas, num país que, até recentemente, era um dos mais pacíficos da América Latina. Claro que o consumo de drogas afasta os jovens do convívio social, prejudica a saúde do usuário, gerando também um custo social elevado para o sistema de saúde pública, compromete a produtividade e o rendimento escolar, e provoca danos na sociedade, pela agressividade e violência, pelos acidentes, morte e assassinato provocados pela embriaguez que inibe o estado de vigilância e a percepção de risco dos consumidores. Um desastre social.

No entanto, para além dessas consequências negativas do consumo (no usuário e na sociedade), a guerra às drogas vem provocando um aumento significativo do custo social, com policiamento, repressão, acúmulo de prisioneiros nas prisões e morte decorrente de confrontos na disputa de territórios. Estima-se que, no Brasil, 54% dos que lotam os presídios foram detidos e condenados por tráfico de drogas, principalmente portadores de pequenas quantidades para autoconsumo (este é o tema que o STF está analisando e que deve impedir a prisão de alguém que porte pequena porção da erva). A guerra não impede o consumo e estimula o crime organizando na medida em que provoca a elevação do preço final das drogas, favorecendo a lucratividade e o enriquecimento do negócio ilegal, fortalecendo o poderio militar narcotráfico, a atração de jovens sem perspectivas, na formação de um exército bem armado para proteger os negócios e enfrentar a repressão do Estado.

Como a guerra parece, realmente, perdida, é urgente a definição de novas políticas para lidar com o fenômeno que já atingiu elevado nível de consumo, uma escala mundial e a formação de poderosas estruturas do crime organizado. A começar pela implantação de uma estratégia para afastar a juventude das drogas e da marginalidade e atrair para permanência na escola e o acesso ao trabalho. Portugal conseguiu algum sucesso quando passou a considerar o porte e o consumo de drogas como contravenção (e não crime), vários países e alguns Estados norte-americanos liberaram a produção e o consumo de maconha, uma das drogas mais usadas e, ao mesmo tempo, menos danosa ao usuário e à sociedade. Estudo publicado na respeitável revista Lancet demonstra que a maconha é menos prejudicial ao consumidor e à sociedade que o cigarro e, principalmente, as bebidas alcoólicas, ambas drogas legais (David Nutt, The Lancet, 2007). De todas as drogas estudadas (lícitas e ilícitas), o álcool é o mais prejudicial à saúde do usuário e perde apenas para heroína, crack e metanfetamina nos danos à sociedade, e estando muito acima da maconha (e mesmo da cocaína) nos dois critérios analisados. E, no entanto, a produção, distribuição e consumo de bebidas alcoólicas (assim como o cigarro) são legais e amplamente aceitas na sociedade.

A descriminalização das drogas menos pesadas, especialmente a maconha, poderia diminuir o custo de manutenção de um grande aparato policial, jurídico e prisional, além de esvaziar o mercado negro, desorganizando parte da atividade criminosa voltada para a produção, distribuição e comercialização da erva. Como na experiência de alguns estados norte-americanos, a descriminalização da maconha tem gerado ainda uma elevação da arrecadação pública, que permite destinar mais recursos para a saúde e para a redução dos danos individuais e sociais.

Num caminho inverso, o que aconteceria se, de repente, o Congresso decidisse, criminalizar a produção e o consumo de bebidas alcoólicas, como aconteceu na Lei Seca dos Estados Unidos, nos anos 20 do século passado? O mercado negro cresceria, a falsificação de bebidas de baixa qualidade aumentaria, prejudicando mais ainda a saúde dos consumidores, as fábricas seriam jogadas na ilegalidade, comprometendo bilhões de receita pública, e os traficantes enriqueceriam e logo criariam um exército para proteger o seu próspero negócio. Ou seja, haveria uma bilionária e inaceitável transferência de receita do Estado para o crime organizado. Com menor arrecadação, o Estado ainda teria que ampliar os gastos para o sistema de repressão, multiplicando os presídios e aumentando a força militar e a violência na guerra contra o crime organizado. Algo parecido ocorre com a guerra às drogas.

Por preconceito ou desinformação, a sociedade brasileira não admite a descriminalização da maconha, mas tolera o negócio do álcool, consumido pela esmagadora maioria dos brasileiros. O certo é que o Brasil vive hoje as consequências desastrosas da criminalização dessas drogas - mercado negro, crime organizado, violência e desmoralização do Estado - que, ao contrário do que se pretendia, tem sido acompanhada do aumento do consumo. Não seria válido tratar algumas dessas drogas da mesma forma que está sendo utilizada para regular o consumo de álcool? Em vez de proibir e perseguir a produção e o consumo, definir regras e punições rigorosas para eventuais crimes provocados por estado de excitação, desvio de conduta e alteração de consciência dos usuários? Por preconceito ou desinformação, a sociedade brasileira não admite a descriminalização da maconha, mas tolera o negócio do álcool e que faz parte da vida dos brasileiros.

O Estado poderia atuar com outros meios para promover uma moderação do consumo e, mais ainda, dos seus danos pessoais e sociais, como fez, de forma bem-sucedida com o cigarro. Seja com advertências e campanhas de educação e informação, seja com punições severas de eventuais efeitos sociais negativos do consumo de álcool. Em vez de proibir o uso, procura orientar e moderar os danos e castiga com rigor as eventuais consequências das atividades públicas praticadas sob o efeito do álcool. Num debate sem preconceitos, temos uma única certeza: o conceito atual de guerra fracassou.

Sérgio C. Buarque, economista

 

Tags

Autor