OPINIÃO

Tudo pode com dinheiro?

A ganância, traduzida na roubalheira escancarada na mídia e redes sociais de países em que há liberdade de expressão, está cada vez mais sofisticada. Golpes inimagináveis ocorrem em governos e organizações públicas, privadas com fins e sem fins de lucro

Imagem do autor
Cadastrado por

EDUARDO CARVALHO

Publicado em 25/08/2023 às 0:00 | Atualizado em 25/08/2023 às 15:46
Notícia
X

Vivemos num mundo em que o mercado e os valores do mercado governam as vidas de muitos indivíduos. A economia de mercado transforma-se em sociedade de mercado. Nessa sociedade quase tudo pode ser comercializável. O comercialismo corrói o comunitarismo. Quanto mais coisas o dinheiro compra, menor o número de oportunidades para as pessoas menos favorecidas. A prevalência dos interesses financeiros acentua as diferenças entre os cidadãos e afeta a noção de bem comum e de cidadania. A mercantilização do ser humano afasta o indivíduo de sua essência humana e das virtudes éticas e morais.

No cerne dessa questão está a premissa de que o mercado e a moralidade são, e muitas vezes, antagônicas. A ideia de que tudo pode ser reduzido a uma transação econômica, em que o valor intrínseco é substituído pelo valor monetário, cria uma visão de mundo em que as relações sociais, as instituições e até mesmo as vidas humanas se tornam commodities. Michael Sandel (professor de filosofia da Universidade de Harvard, autor dos livros "Justiça", "O que é fazer a coisa certa", "O que o dinheiro não pode comprar", entre outros) argumenta que, ao fazer isso, corre-se o risco de ignorar valores fundamentais, como justiça, dignidade, igualdade e bem-estar coletivo.

Em seu livro, "O que o dinheiro não pode comprar?", Sandel explora vários casos em que o dinheiro se tornou o principal motor de ação e tomada de decisões, inclusive a mercantilização da vida humana. Casos como o mercado de órgãos, barrigas de aluguel, compra e venda de partes do corpo humano coloca em pauta questões fundamentais sobre a dignidade humana e o valor intrínseco da vida.

Nesse cenário de "tudo pode com dinheiro", cidadãos de países com baixo nível educacional, fome e um rol de necessidades básicas, são alvos de "políticos" em campanha para eleição. O voto pode ser comprado com dinheiro e com promessas para melhorar o bem-estar desses cidadãos. Ação semelhante pode ocorrer com indivíduos que almejam cargos nas diversas organizações públicas. Pela magnitude do orçamento que ficará sob a sua gestão, a negociação é feita por líderes de partidos em troca de apoio nas votações de leis, orçamentos, planos, projetos. Esse mercado de troca de dinheiro por favores políticos, subornos, tráfico de influência coloca em xeque a integridade de instituições e enfraquece a confiança na sociedade, minando o sistema democrático.

A busca insaciável por dinheiro e poder obscurece a mente. É perfil de indivíduos gananciosos. Transforma em pedra o coração do ser humano. A ganância faz esquecer o bem comum e é quase sempre alimentada por mentiras, inveja e corrupção. A palavra é usada para denotar pessoas más, sem escrúpulos. A ganância mata os mais nobres sentimentos humanos, como a verdade, a compaixão, a empatia, o respeito, o amor e leva a práticas condenáveis.

Quando o poder e o dinheiro são colocados em primeiro lugar, organizações e sociedades enterram valores. A ausência de justiça coloca pessoas contra pessoas, organizações contra organizações, estados contra estados, países contra países. A história relata que as ações de indivíduos, governos, reinos e países dominados pela ganância levaram a guerras por conquistas ou ao acúmulo de riquezas nas mãos de minorias, criando imensas injustiças sociais, pobreza e fome.

A ganância, traduzida na roubalheira escancarada na mídia e redes sociais de países em que há liberdade de expressão, está cada vez mais sofisticada. Golpes inimagináveis ocorrem em governos e organizações públicas, privadas com fins e sem fins de lucro. Envolve conluios formados por políticos, empresários, acionistas, conselheiros, fornecedores, gestores. Recursos que poderiam oferecer melhor saúde, educação e bem-estar à população. Em países violentos, gananciosos lideram e participam de quadrilhas criminosas que explodem caixas-fortes, roubam veículos e cargas em rodovias, assaltam lojas e residências.

Tudo isso mostra a necessidade urgente de um plano para construir uma sociedade digna, centrada em valores humanos e sociais. A educação desempenha um papel fundamental nesse processo. As escolas precisam priorizar a educação de valores como empatia, solidariedade, respeito, honestidade, consumo responsável. Conscientizar crianças e jovens de que dinheiro não compra amor verdadeiro, felicidade duradoura, paz interior. Através de uma abordagem que provoque questionamentos e reflexão crítica, com o objetivo de cultivar uma nova geração de cidadãos comprometidos com o bem comum.

Sandel estimula o diálogo sobre o conceito de cidadania, a sociedade queremos viver, os limites éticos dos mercados e a importância de cultivar e preservar valores em um mundo cada vez mais monetizado. Entretanto, em muitos países não é bastante. Urge complementar com medidas eficazes de combate ao crime e corrupção.

Eduardo Carvalho, Harvard University Fellow

 

Tags

Autor