OPINIÃO

Carta ao Tom, meu amado filhinho de quatro patas

TOM, um poodle, era meu amado filhinho de quatro patas. Ele morreu no Dia dos Pais, levando uma parte de todos nós, parte que dificilmente recuperaremos.

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 29/08/2023 às 0:00 | Atualizado em 29/08/2023 às 7:20
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Na verdade, foi um inesperado - e doloroso!- presente que você me deu naquele Dia dos Pais. Ali, eu pude perceber, finalmente, e acho que sem nenhum atraso, o valor que algumas teses, digamos, "rousseaunianas" têm para cada um de nós: aquilo que podemos aprender com a Natureza. Eu também faço parte dela, mas minha cultura me afastou e me desaprendeu!

Estranhamente você não precisa "falar" nossa língua articulada e conceitual para exprimir tudo o que queria (e o que não queria, sobretudo os remédios, lembra?): bastava o olhar, esse seu olhar preto como um abismo, grande como um farol, brilhante como uma luz que encandeia: via-se sua alma diretamente, sem esquinas, sem desvios. Percebi, ao longo dos anos que passamos juntos que você era um, digamos, "catalisador": concentrava e distribuía todo o amor que circulava na nossa casa, casa que você adorava: um amor inefável, sem dizeres audíveis, sem poesia, sem preciosidades, sem pieguice. Amor que eu diria, para repetir os "soixantehuitards", "fusional": você chegava a ficar doente quando qualquer um de nós ficava; deprimido quando nos percebia assim, e vinha deitar-se junto, em contrição religiosa, a oferecer seu silencioso, mas perceptível afago.

Você tem de aceitar, no entanto, que é manhoso, ciumento, comilão, temperamental. Eu também tenho ciúmes de você, sobretudo, quando Gabi, a namorada de José, chegava aqui em casa e você me abandonava para cair lânguido nos braços dela. É verdade: ela é mais bonita do que eu, mas "pera aí meu cumpade"!

Você sabe que não sou religioso, mas tenho, cá para mim, minha noção de transcendência, e com você comecei a acreditar piamente que temos, de fato, duas vidas: uma dentro de nosso corpo original e a segunda na memória daqueles que amamos e que nos amaram. Você ficará, Tom, no interior de meu mais profundo afeto, da minha mais amorosa lembrança, enquanto lembrança e afeto ainda me habitarem.

TOM, um poodle, era meu amado filhinho de quatro patas. Ele morreu no Dia dos Pais, levando uma parte de todos nós, parte que dificilmente recuperaremos. Um pedaço, aliás, que você mesmo plantou em cada um e que nos fez sentir melhores como seres humanos, mas que agora, você pede de volta. Espero que você também não se esqueça de nós e receba em seu coraçãozinho a continuação do grande amor que sempre te dedicamos. Nós guardamos o seu.

Gil, sua mamãe, vai espalhar suas cinzas em Porto de Galinhas que você adorava e eu, de minha parte, expresso a imensa alegria de saber que você encontrou, em vida, o que poucos homens encontram: um lugar no Mundo, junto de sua família humana adotiva.

Para Tom

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

 

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