A (superável) controvérsia do resultado do julgamento da ADI 5.953 no STF
Cabe, inclusive, ao Supremo aprimorar a sua comunicação com a sociedade. Esse é um desafio, em suma, das instituições de modo geral. Somente assim é que se conseguirá combater o diz-que-me-disse tão nocivo à segurança jurídica
Quem, na graduação jurídica, ultrapassou as "disciplinas do eixo fundamental", sabe que a imparcialidade do julgador é condição validadora do processo, e, portanto, algo intransacionável.
O Código de Processo Civil, e, na esteira dele, a Resolução 200 do CNJ, ambos de 2015, embora bem intencionados na proteção dessa premissa, expandiram ao ponto da inexequibilidade, segundo vozes autorizadas, o critério objetivo do impedimento, daí o ajuizamento perante o STF da ADI 5.953, tendo como objeto o art. 144, inc. VIII, do CPC.
Pelo dispositivo, um juiz de Brasília que tenha um parente de até 3º grau em escritório de advocacia de São Paulo que preste serviços a uma empresa de atuação nacional, estaria impedido de funcionar em qualquer processo dessa empresa. Se o parente do juiz for um advogado público, haveria um impedimento generalizado se o cliente se cuidar da União ou de um Estado-Membro. Ter-se-ia, para resumir, uma presunção absoluta de parcialidade.
Ora, se não é desejável para o sistema de justiça que a efetiva prestação jurisdicional e o devido processo legal sejam obstaculizados por meios processuais ilusórios em razão de condições externas ou de circunstâncias particulares do caso, por igual não o é para que se retire do processo magistrado imparcial (juiz natural do feito), assumindo-se, em presunção absoluta, que ter um parente em um escritório de advocacia que atue para uma parte é fator que o torna automaticamente impedido de decidir quaisquer processos dessa parte, inclusive aqueles nos quais o escritório não funcione.
Por isso as opiniões críticas que sustentam que a regra do inciso VIII do artigo 144 do CPC criou mais problemas do que respostas. O dispositivo não impediu, na prática, a con¬tratação "terceirizada" ou "transversa" de advogado, e, ao buscar dificultar a corrupção, gestou uma ferramenta que, se distorcida, servirá à manipulação do quórum dos Tribunais e à distribuição de competência nas comarcas.
O STF não deu a entender que os juízes podem sentenciar causas em que parentes sejam advogados. O que a Corte fez foi definir que o impedimento não pode alcançar causas patrocinadas por todos os escritórios que representem o mesmo cliente que o escritório do parente do juiz.
Não é razoável que o magistrado tenha de conhecer toda a carteira de clientes do escritório do seu parente, o que esbarra no sigilo profissional, cuja ruptura imotivada é, inclusive, infração disciplinar. Nem pode ser o juiz coagido a se declarar impedido em quaisquer causas em que clientes de escritório de parente constem como partes, não em relação ao parente em si, nem à pessoa ou à empresa defendida por tal parente, mas no tocante a qualquer cliente do escritório em que o parente trabalhe.
A decisão do Supremo não afastou o inciso III e o § 3º do artigo 144 do CPC. O que se fez foi concluir foi que o juiz não tem como saber que a parte, em outras demandas, é cliente de escritório de um parente seu, bem assim que não se pode exigir que o indivíduo apresente, com a sua petição inicial, a lista detalhada de todos os seus advogados, tampouco é possível se cobrar do advogado que forneça ao juiz os nomes completos de todos os seus clientes.
Ora, perdura o impedimento de julgar quando parente de até terceiro grau atua no processo como Defensor Público, Advogado ou membro do Ministério Público. Da mesma maneira continua a ser vedado para os casos de procuração conferida a membro de escritório de advocacia que tenha em seus quadros advogado nessa relação de parentesco, mesmo que não intervenha diretamente no processo. Note-se que o próprio Presidente da Comissão Elaboradora do atual CPC, Ministro Luiz Fux, entendeu pela inconstitucionalidade do inciso VIII do artigo 144.
Cabe, inclusive, ao Supremo aprimorar a sua comunicação com a sociedade. Esse é um desafio, em suma, das instituições de modo geral. Somente assim é que se conseguirá combater o diz-que-me-disse tão nocivo à segurança jurídica, fenômeno de que é hoje o mais peçonhento espécime as fake news. Em concepção moderna, a accountability judicial transpõe, nas lides não penais, o artigo 144 do CPC. É isso.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado