OPINIÃO

A tabacaria da Tabacaria

Mas haveria mesmo uma tabacaria da Tabacaria? Isso sempre desejei saber. Como nenhum especialista quis perder tempo na pesquisa, para responder, tive que procurar eu mesmo.

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JOSÉ PAULO CAVALCANTI [email protected]

Publicado em 08/09/2023 às 0:00 | Atualizado em 08/09/2023 às 16:40
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Lisboa. "É o mais belo poema do mundo", segundo Hemy Hourcade. No início dos anos 2000 o jornal parisiense Liberátion fez enquete, com 100 poetas, para saber qual teria sido o maior poema do Século XX. Ganhou a Tabacaria, de Fernando Pessoa; e, em seguida, The wasted land (esse título tem 5 traduções diferentes, no Brasil, prefiro Terra devastada), de T.S. Elliot. Mas haveria mesmo uma tabacaria da Tabacaria? Isso sempre desejei saber. Como nenhum especialista quis perder tempo na pesquisa, para responder, tive que procurar eu mesmo.

Para tanto é preciso, antes de tudo, lembrar que nosso poeta só escrevia sobre o que estava de seu lado amigos, família, geografia da cidade, admirações literárias, mitologia, por aí. Nada, nele, era por acaso. Em outros escritores poderia ser algo secundário a tabacaria, o café, a praça, uma loja qualquer em que a cena se passasse. Algum espaço, banal, escolhido sem maiores preocupações. Já com Pessoa, não. Vênia para confessar que o livro que escrevi sobre ele (Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, Ed. Record, depois também publicado em mais 12 países) começou, de verdade, no momento mágico em que descobri isso.

Então reli as 27.543 páginas que deixou na sua Arca, mais os muitos esparsos, no total quase 30 mil; e sabia quando escreveu cada uma delas, qual a razão que o levou a fazer isso, em quem pensava. Como se Pessoa deixasse, em tudo que escrevia, rastros de sua própria vida. Sabia então, sem dúvida possível, que existia mesmo essa tabacaria da Tabacaria. Mas qual seria?, eis a questão.

Para alguns biógrafos, tratava-se da Tabacaria Costa, ainda hoje funcionando na Rua Áurea, 295 por lá, quase sempre, comprar tabacos. Segundo outros, seria a Casa Havaneza do Chiado, na Rua Garrett, 124-134, dedicada ao comércio de cigarros por miúdo, outros artigos para fumadores, jornais, lotaria. O que faz sentido por ser vizinha, parede com parede, da Brasileira (do Chiado, não a do Rossio), onde ia (quase) todos os dias para encontrar seu grupo de amigos.

Para outros, ainda, seria a Leitaria Acadêmica, destinada a comércio e venda de leite, laticínios, pastelarias, vinhos, engarrafados e a miúdo, frutaria, águas minerais etc. Neste caso, uma impossibilidade absoluta, por ter sido inaugurada só em 1º de janeiro de 1938, quando Pessoa já estava morto. Opiniões dadas, todas, sem nenhuma forte histórica.

Versão mais comum, entre autores, é que seria A Morgadinha, situada em Campo do Ourique, na Rua Silva Carvalho 13/15, esquina com Coelho da Rocha a rua em que morava Pessoa, no número 16, quando foi escrito a Tabacaria. Por se tratar do único local, próximo a seu edifício, em que se podia comprar tabacos. A ideia de que tenha sido mesmo ela se baseia no próprio poema, situando a tabacaria em frente a suas janelas.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo

que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?).

Mas também essa hipótese não se sustenta. Primeiro porque o quarto de Pessoa, à época em que escreveu esses versos, não tinha janela nenhuma. Sendo único assim, com vista para a rua, o destinado aos sobrinhos. Uma informação que me foi dada pela própria Manuela Nogueira, com toda a autoridade de ser uma das duas crianças (a outra era seu irmão João Miguel) que dormia nesse quarto da frente. E também por António Manuel Rodrigues de Seixas, filho do barbeiro Manassés, que (quase sempre) acompanhava o pai quando ia fazer diariamente a barba de Pessoa, no seu quarto.

O apartamento foi mais tarde inteiramente destruído, por dentro, nas reformas para a ambientação da hoje Casa Fernando Pessoa. Sem mais registros do passado, pois. Mas a planta que desenhou esse filho do barbeiro Manassés, em minha frente, começava com a sala de jantar e o quarto destinado às crianças, ambos com janelas; depois, em um corredor, o quarto da irmã Teca, bem espaçoso; e, só então, o de Pessoa. Pequeno, como de um empregado, escuro, quente, deprimente, segundo seu testemunho. E sem janela nenhuma.

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