OPINIÃO

Estou-me nas tintas

Os sistemas jurídicos dos Estados democráticos estão perdendo contato com as necessidades ou interesses cruciais da sociedade moderna.

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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 10/09/2023 às 0:00 | Atualizado em 10/09/2023 às 6:12
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A expressão "estou-me nas tintas" é portuguesa. Significa desinteressar-se de algo, adotar atitude de indiferença. O brasileiro diria apenas: "em primeiro lugar, meus troféus". Pensei nessa elocução quando acompanhei as discussões do Supremo Tribunal Federal (STF) na ação movida pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) para flexibilização das regras de impedimento de juízes. Na hipótese, nenhum magistrado estaria tolhido ou refreado do julgamento de processos de clientes de escritórios de cônjuges, parceiros e parentes.

Espantoso é que a quase pluralidade do STF - incluindo o neófito Ministro Zanin - tenha aderido à quebra da rigidez do artigo 144 do CPC, de 2015. Fazendo os cálculos, a legislação tem menos de 10 anos. Sequer iniciou a etapa de maturação. Curioso é que foi o então ministro do STJ Luiz Fux que presidiu a comissão de juristas e debateu a proposta com os membros da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Hoje esse Ministro forma a maioria para que os juízes possam julgar processos de clientes de escritórios de filhos e esposas. Grande parte dos magistrados do STJ, admite que a ressalva à atuação dos julgadores viola o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. A restrição seria "inviável" por conta da rotatividade entre os escritórios de advocacia. Divergem desse entendimento os ministros Fachin (relator) Rosa Weber e Luís Roberto Barroso ao afirmarem que a regra de impedimento foi criada para garantir um julgamento justo e imparcial.

Na condição de Ministro mais antigo, Gilmar Mendes lidera o grupo com a coerência de sempre. Foi o caso da aceitação do julgamento do processo de Jacob Barata, mesmo tendo sido padrinho de casamento da filha do empresário. E até indagou aos jornalistas: "Vocês acham que ser padrinho de casamento impede alguém de julgar um caso? Vocês acham que isto é relação íntima, como a lei diz? A resposta revela a interpretação variante ou instável do texto de lei e conduz à inteligência de que os princípios jurídicos se martelam ou digladiam quando o magistrado julga com indiferença os demais princípios: o da moralidade, segurança jurídica, imparcialidade e interesse público. O imperador Júlio César diria melhor: a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita, "não basta ser honesta, deve parecer honesta".

Esse vaivém de posições dos julgadores significa que o Direito está sujeito a recuos e avanços? Que o direito prescinde da linha reta e admite meandros, labirintos e supostas lacunas? Serviria, quem sabe, para nutrir as palavras do poeta Affonso de Sant'Anna: "Mente no passado. E no presente passa a mentira a limpo. E no futuro mente novamente...Mente desde Cabral...transformando a história do país num acidente de percurso". Mas é preciso deixar assente que o problema não é do Direito e sim do homem, máxime em nossa atual sociedade de risco onde toda decisão é sombreada de vulnerabilidade e dependente, em grande parte, da conveniência, ideologia e interesse dos que julgam. Enfim, a luta pelo direito e pelo alcance da justiça poderia ser tudo, exceto um combate de retaguarda. Afinal, direito - e muitos confundem - é bem mais do que lei. O legal pode ser, não raro, injusto e tirânico. O mesmo não ocorre com o direito. Por outro lado, a vida é bem mais imaginativa que o julgador - afirmava o professor Oliveira Ascensão. Mas o notável ou brilhante catedrático português não cogitou do raciocínio "a contrário": o julgador deseja sempre ser mais imaginativo do que a própria vida. O STF, por exemplo, está apinhado de ações, mas os integrantes da honrosa Casa preferem deixar que os processos ganhem bolor para cuidar de alimento fresco por fora da sua horta. É o caso da descriminalização da maconha, atribuição do Poder Legislativo.

Com essa opção, o STF acolhe a ideia de justiça quantificada: "Quantas gramas de maconha distingue o traficante do usuário de drogas? A pergunta lembra o filme de Alejandro González Iñárritu "21 gramas". Na situação do STF, os ministros começam com 23 gramas e vão até 100. Novamente, é o Ministro Fachin, que emite o voto desacorde: o problema exigiria critérios objetivos e deve ser melhor estudado pelo Poder Legislativo.

Tudo isso leva a supor que os sistemas jurídicos dos Estados democráticos estão perdendo contato com as necessidades ou interesses cruciais da sociedade moderna. Para reversão dessa patologia geram-se, em cascata, não apenas reformas precipitadas, inconsequentes e extemporâneas da legislação existente, mas, acima de tudo, exegeses imperfeitas e equivocadas de normas não suficientemente testadas pelo ordenamento jurídico.

Dayse Mayer, doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

 

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