Como uma Oração de Adeus!
"O homem ama o mar acima de tudo, porque ele não devolve o amor que lhe emprestamos. Eu vejo, num longínquo horizonte, minha casa, minha família, minha pátria, essas prisões que a sociedade dos homens me impuseram"...

O meu querido amigo, professor Oussama Naouar, ex-Pró Reitor de Extensão e Cultura da UFPE, recebe nessa semana o título honorífico de Cidadão Pernambucano conferido pela Alepe. Oussama é francês de Lyon, fez sua formação na Universidade Louis Lumière II e veio, há mais de dez anos, fazer seu pós-doutorado na UFPE, sob minha orientação. Daqui não mais saiu e hoje é professor de Literatura Francesa.
Francês de origem familiar tunisiana, Oussama acha que não voltará mais, nem para a França, nem para o país de seus pais: um gesto de adeus definitivo às suas "origens" que, agora, se conclui com uma cidadania honorária, oferecida pelos representantes do povo de Pernambuco.
Quando eu recebi o mesmo título refleti, em minha oração de agradecimento, sobre o que significa "SER DE ALGUM LUGAR". Tinha uma razão para fazê-lo que era aquilo que chamei de uma "antropologia interior": o exílio de dez anos na França me permitia enxergar as camadas de cultura que constituíram aquilo que sou, que penso que sou, que digo que sou. Foi o que fiz naquele momento solene. O caso de Oussama me parece diferente do meu e o belíssimo texto em francês que me enviou, solicitando-me uma tradução - texto que reproduzo adiante- me deu a impressão, como num verso d'Os Lusíadas, que ele já enxergava, quando ainda estava na terra onde nascera (ou se transportava imaginariamente para as areias desérticas da Tunísia ancestral), que depois da linha do horizonte, para onde sua nau caminhava, "muito além da Trapobana", havia uma outra vida que, uma vez vivida, não permitiria mais a volta.
Avaliem, vocês mesmos, a oração que traduzi e que espero ter guardado a beleza e a dor do original:
"Sobre uma nau de vela latina, eu sonhava com uma outra vida, grávida de silêncio, de desejo e de aridez úmida. Os elogios dos antigos estão conservados em um silêncio que os aprisiona. Silêncio, e um leve sussurro das ondas.
Silêncio fluido e lívido de um deserto feito de água e tecido de algodão barato. É quando o vento quente de um Siroco vem soprar sobre uma vela de algodão lacerada pelo sal grosso do mar. As imagens dos barcos latinos impõem, como há cem anos, algumas cores sobre o domínio oligárquico de um mar azul. Nossas faces enegrecidas amadurecem sob aquele sussurro ritmando a miséria permanente de nossas vidas de camponeses do mar. Sem nenhum amor por ele como partilhar a vida? Eu acreditei que os homens livres estavam nos desertos de areia, mas não é verdade: eles estão aqui, comigo, sobre estas embarcações movidas pela simples coragem dos homens. O homem ama o mar acima de tudo, porque ele não devolve o amor que lhe emprestamos. Eu vejo, num longínquo horizonte, minha casa, minha família, minha pátria, essas prisões que a sociedade dos homens me impuseram; pelo mar, ponto de diferença, ele sabe desprezar o ditador, assim como os camponeses das terras e dos mares. Fazer aquilo que meu pai fez antes de mim, determinismo, destino ou liberdade. Liberdade de procurar o desprezo desta adorável estrangeira. Eu a amo quando ela me detesta, o que ela faz de maneira a me lembrar que a vida não é nada, quando o cinzento invade o céu, quando nossos corações se apertam e nossos joelhos se curvam. Quando o gosto do sal penetra em minha garganta e me faz esquecer o que respirar quer dizer, quando só os nossos pensamentos são só nossos, quando mulher e crianças não significam nada.
Sobre uma nau de vela latina, eu sonhava com uma outra vida, grávida de silêncio, de desejo e de aridez úmida. Os elogios dos antigos estão conservados em um silêncio que os aprisiona. Silêncio, e um leve sussurro das ondas".
Uma breve e pungente Oração de Adeus!
Flávio Brayner , professor emérito da UFPE e Vvsitante da UFRPE