OPINIÃO

Nem é julgamento político, nem foi um domingo no parque

O panorama processual leva ao escancaramento da atuação de uma multidão em tumulto, que deliberada e espontaneamente se organizou para a prática de um comportamento comum contra as instituições.

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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 15/09/2023 às 0:00 | Atualizado em 15/09/2023 às 10:57
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Com o início do julgamento no Plenário do STF do primeiro lote de denunciados pela Procuradoria Geral da República por envolvimento nos atos antidemocráticos e análogos ao terrorismo (entre outros crimes) praticados no 8 de janeiro de 2023 na capital, Brasília, veio à tona uma vez mais na crônica forense a figura do crime multitudinário.

Trata-se da conduta cometida em turba tumultuária, sinônimo de multidão psicológica (não apenas o agregado de pessoas no qual o conjunto é reflexo das partes, mas a cen¬telha da sugestão, tornando comum a todos um mesmo objetivo, atuando de pessoa para pessoa, em determinado lugar e ao mesmo tempo).

De partida, não é crível que ainda restem dúvidas sinceras daquilo que efetivamente se passou naquele domingo e da gravidade desses eventos. Quem hoje teima em as alimentar ou disseminar age à revelia da ética. Não é patriota.

Assistiu a Nação perplexa o sequestro das cores da sua bandeira e do próprio ideal de patriotismo para que se atentasse contra o resultado de uma eleição que transcorrida sem fraudes.

Não foram naquele 8 de janeiro perpetrados crimes de menor potencial ofensivo, substituíveis por penas alternativas, mas ataques inenarráveis e ignominiosos contra a Constituição Cidadã. Equiparados à traição. Quando no mínimo, o cometimento de um crime-meio coletivo (produzir ambiente caótico) para o alcance de um crime-fim de resultado aumentado (golpe militar). É bem diverso do somente protestar.

O panorama processual leva ao escancaramento da atuação de uma multidão em tumulto, que deliberada e espontaneamente se organizou para a prática de um comportamento comum contra as instituições. Este é o núcleo do ilícito multitudinário proposto na doutrina de Damásio de Jesus, autor que todo bom aluno de Direito conhece. Nenhuma figura penal inédita. É um concurso de pessoas de natureza sui generis.

Invasões de propriedades rurais e brigas em estádios esportivos, como nos de futebol, envolvendo torcidas organizadas, são outros exemplos desse tipo delituoso. Citando Aníbal Bruno, forma-se com esse modal criminoso uma "alma nova", que não é a simples soma das almas que a compõem, mas do que nelas existe de subterrâneo, sendo esse o espírito que influirá para a violência.

Os componentes da turba (multidão psicológica) se mantêm coesos graças a uma lógica de imitação e sugestão, a desencadear um "efeito manada", capaz de fazer o todo caminhar em sentido único, seja para atividades lícitas ou em verdadei¬ra fúria assassina. Incide o que o Direito Penal intitula "desindividuação", teoria na realidade criada por Philip Zimbardo, e que se decompõe em três variáveis: o anonimato, a difusão da responsabilidade e a presen¬ça ou tamanho do grupo.

Como se vê, ao hospedar essa explicação, intérprete algum do 8 de janeiro, com destaque ao STF, pode estar se prestando ao papel menor de palco de um julgamento político. Ora, no constitucionalismo contemporâneo, não existem liberdades fundamentais absolutas, o que evidentemente inclui as de expressão, reivindicação e protesto, e de reunião. Incomodados que se mudem, se resistentes às regras do jogo.

O recente feriado de 7 de setembro foi o primeiro após o trauma da barbárie de janeiro. Por incrível que pareça, porém, proliferam as fake news de que tudo foi engenhosa armação das "esquerdas" e que a democracia brasileira nunca esteve realmente sob ameaça. Faltando apenas confirmar que Elvis não morreu.

Os crimes praticados no 8 de janeiro encontram na tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e do golpe de Estado seu desaguadouro definidor, sendo delitos complementares os de dano qualificado e deterioração do patrimônio público (prejuízo de cerca de 25 milhões, dinheiro meu, seu, nosso).

Não só urge despolitizar o marco cronológico da independência, como restabelecer o próprio debate público relacionado à solidez dos alicerces democráticos. Se parte da população receia uma data tão marcante como o feriado da independência e outra vê a efeméride como pretexto para ilícitos, então há algo de errado na foto. Moral da história: tolerância zero com quem ataca a democracia. O Brasil não é hooligan.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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