OPINIÃO

Uma vida de gratidão

Do trabalho ousado, sua coragem e bondade nos abençoam, pelo que retribuímos com imensa gratidão.

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FERNANDO DUERE

Publicado em 19/09/2023 às 0:00 | Atualizado em 19/09/2023 às 13:28
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Há cerca de quatros anos, ocupava este espaço para exaltar a vida de Carmelita Dueire, minha mãe. Ela completava 100 anos de vida, e eu escrevia sobre gratidão. Sim, gratidão ao seu espírito largo e generoso. Ao exercício de ser feliz tentando fazer com que os outros também fossem felizes. Carmelitis, como a chamava Dom Hélder Câmara, por sua capacidade de ser muitas em uma só, foi ampla, e usava mãos e palavras para juntar, somar, e lidar com as durezas da vida. Mela, apelido carinhoso, na pequena família, nasceu para o mundo, e para enfrentar as infelicidades alheias. Não dava trégua aos infortúnios da vida.

Logo cedo, nos idos dos anos sessenta, assumiu a presidência do Banco da Providência, plataforma social de largo alcance que combatia a miséria, a falta de dignidade humana. Foi nesse e em outros espaços que formou fileiras ajudando o Bispo Hélder a construir um exército de voluntários que tinha médicos, oftalmologistas, engenheiros, advogados, profissionais liberais, aposentados, estudantes, representação de outros países, senhoras do lar. Uma cruzada da esperança.

Na Providência, o atendimento médico era cuidadosamente feito por esse voluntariado, onde tudo era bem pensado, inclusive com uma farmácia em anexo para despachar as receitas gratuitamente. Milhares de cestas básicas eram entregues mensalmente a pessoas cadastradas e devidamente visitadas por assistentes sociais.

Discreta, pouco aparecia nos veículos de comunicação. O importante sempre foi a causa. Quantas vezes a acompanhei ao Hospital do Câncer, onde além de um lanche preparado pelas parceiras e integrantes dessa luta, saia de alojamento a alojamento, conversando, abraçando a solidão de enfermos em busca do melhor acolhimento.

Os anos eram de chumbo, Dom Helder perseguido, maltratado pelos radicais, pestilento para os convenientes ao regime, e minha irmã desaparecida em incertos porões da Ditadura, enquanto seu amor de mãe sofria, também se renovava na fé e esperança. Me dizia ;"sonhei com ela hoje, meu filho, está chegando a hora em que vai retornar para casa - é para nos mantermos na esperança." A fé nos segurava e quando ficava pressionada, mais intensa era a entrega de sua vida a outras vidas. De Dom Hélder Câmara foi mais que colaboradora, amiga incondicional, confidente.

Essa é a Carmelita, que com sua discrição certamente não gostaria desse texto, mas que ora publico para que possa servir de exemplo para todos nós. Fique em paz em sua nova dimensão. Por aqui você é lembrada com ternura e saudade, condão mágico do convívio de uma vida muito bem vivida. Do trabalho ousado, sua coragem e bondade nos abençoam, pelo que retribuímos com imensa gratidão.

Fernando Dueire, senador da República

 

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