OPINIÃO

Diário de uma bicicleta

A burocracia é sempre desalmada nas cobranças e menos lépida na correção do erro.

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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 24/09/2023 às 0:00 | Atualizado em 24/09/2023 às 12:18
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O aniversariante completava 89 anos e os dois filhos (um casal) haviam convidado seis familiares para os parabéns. A dificuldade maior era apagar a vela do bolo - um autêntico foguete - num horário censurável: 13 horas. Justificava-se: o neto, residente com a mãe no apartamento do avô, foi incumbido de resolver um problema na Funape: o estado havia sustado os proventos do idoso, desde o mês de junho. O banco esclareceu que o problema era o cadastramento e prova de vida. Mas as exigências haviam sido sanadas quando o aposentado repetiu a icônica frase de Decartes ("cogito, ergo sum"). A instituição bancária deixou assente que o Recife estava no século da automação. Por isso, tudo era veloz: a máquina estatal suspendia, mas reativava rapidamente. Tal não sucedeu. A burocracia é sempre desalmada nas cobranças e menos lépida na correção do erro. Com o corre-corre na solução do imbróglio, o neto repetiu a história dos três porquinhos: soprou, soprou, soprou a vela do bolo para evitar que o avô perdesse o fôlego. Repentinamente, apanhou a primeira fatia deixando cada convidado com a boca aberta e a saliva em cachoeira. Afinal, ninguém havia almoçado. Na sequência, o jovem chamou um táxi e informou o destino: bairro do Derby. Descobriu que no endereço indicado funcionava o IRH Sassepe. No balcão de informação, a funcionária muxoxou: "Meu filho você está "fora do pino". Faz mais de quatro anos que o órgão mudou de local. "Puxa, vô! Mesmo com a pandemia você precisava ser mais atento - comentou o rapaz para si".

No corre-corre dos parabéns, o neto esqueceu o antibiótico que tomaria às 16 horas Foi a mãe que se lembrou, tão logo o filho apanhou o táxi. Com a fisionomia túrbida, ela abriu o aplicativo, clicou no lugar reservado a "envios" e leu a resposta: "a bicicleta está a caminho". Aniversariante e convidados, meio atônitos, esqueceram o bolo e os docinhos. Num silêncio monástico, todos se converteram em vacas de presépio: apenas balançavam a cabeça. Eis que o interfone toca. O portador desejava falar com a dona da casa: "É a senhora que vai receber o pacotinho?" E a mãe do rapaz contrapõe: "Senhor, como é que eu posso receber o pacote se estou falando do edifício onde o remédio lhe foi entregue? E o "bicicleteiro" responde: "No meu celular consta que devo receber a encomenda na Estrada dos Pintos e deixar no mesmo endereço. Esclarecido o equívoco, a senhora indaga quanto tempo uma bicicleta leva para chegar ao Derby. O entregador - que iria receber menos de quatro reais - revela a pretensão de cancelar a corrida. A discussão fica mais acalorada ou tensa. Logo é suavizada com a aceitação da tratativa inicial.

Novamente, o olhar maroto dos convidados é dirigido para o bolo e os doces. Uma mão mais atrevida fica paralisada no ar quando a filha do aniversariante suplica um pouco mais de paciência. Era imperioso o acompanhamento do trajeto da bicicleta para conhecer os supostos acidentes de percurso. Com os olhos no itinerário, a senhora percebe que a bicicleta havia empacado na Av. Rui Barbosa. Mesmo com o risco de morrer no trânsito, o rapaz atende o celular. Assevera que o tráfego está o caos, mas o destino já estava próximo. Não explicou o tipo de destino que o aguardava. Vinte minutos depois, o condutor volta a telefonar: "Madame, a quem eu devo entregar a encomenda?" E ela retruca: "Procure Victor". E o bagageiro rebate: "Victor sou eu". E a mãe refila: "Que culpa eu tenho se a sua genitora escolheu o mesmo nome do meu filho?" "Agora ficou mais explicado, madame".

Rompendo o silêncio, um dos parentes reclama o valor a ser pago ao "bicicleteiro". Talvez ele merecesse R$10,00. Ninguém sabe se o veículo é propriedade do condutor, se foi apanhada no reboque das bicicletas na Praça dos Cachorros e qual o valor que o aplicativo irá reter. A mãe do rapaz acolhe a sugestão e liga para o filho: "Victor, seu remédio já chegou?" "Mãe, o avô está ferrado. Estão dizendo que ele só recebe o provento quando agendar na internet, escolher dia e horário, confirmar o agendamento e se apresentar pessoalmente na Funape. Está lembrada que vamos viajar amanhã? Talvez a funcionária da nossa casa arranje uma "lan house" para fazer a marcação". E o filho adiciona: "Mas é preciso avisar ao avô que ele deve esperar duas semanas após a reclamação. E os proventos não serão pagos numa só tacada. Existe um cronograma a cumprir. Adianto que o estado também não paga juros ou correção. Juros existem nas contas do estado que esquecemos de quitar".

"Mãe, a bicicleta acaba de chegar". "Filho, pague R$10,00". "O remédio já está comigo, mãe. "Pagou R$10,00, Victor?" "Não, paguei R$20,00". "Você enlouqueceu? " "Mãeeee! Ele me deu o troco de R$10,00. E não esqueça de resolver o caso do avô com a Sra. Raquel. E tem que ser hoje!". "Não conheço nenhuma Raquel. "Puxa, mãe, lembra que você e a família inteira votou na candidata Raquel Lyra?" "E não a trate de governador! Ela não gosta. É uma forma de macheza e você é uma mulher contemporânea".

Dayse de Vasconcelos Mayer, professora e advogada

 

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