OPINIÃO

Reconstrução nacional: pesadelos e expectativas

...A vertente dos gastos vai se expandindo, sem segurança de que receitas compatíveis com tal expansão terão lugar. Pior, na definição de instrumentos de responsabilidade fiscal, foi ainda mais enfraquecida a prudência inaugurada em 2000...

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TARCISIO PATRICIO DE ARAUJO

Publicado em 26/09/2023 às 0:00 | Atualizado em 26/09/2023 às 11:58
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Outubro-dezembro de 2022 foi trimestre de muito medo. Fatos e notícias de então traziam ecos políticos e policiais. Trocas de ideias com amigos alimentavam um quase pavor. Pessimismo escanchado na cadeira de Otimismo. Pesadelo em plena insônia - aquele que não precisa do sono para existir; aquele que turva sonhos. Acampamentos à frente de quartéis das FFAAs, bem aninhados e tolerados, adentrando o mandato do novo governo. E, em 24/12/2022 (!), a descoberta de uma bomba em caminhão de combustível, próximo ao Aeroporto de Brasília-DF. Por arte do acaso ou erro de quem perpetrou o atentado, não veio a explosão que poderia ter sido o gatilho da apregoada intervenção militar para garantir "Lei e Ordem"; e sabia-se lá aonde isso levaria o Brasil. Tudo embrulhado na retórica presidencial que arrotava ação "dentro das quatro linhas da Constituição" e ao mesmo tempo trazia desdém pela democracia, inclusive com calculada aleivosia contra a segurança das urnas eleitorais. O pacote completo - que inclui invasão e depredação, em 08/janeiro, de patrimônios-símbolo da democracia - escancarou a face do que não era mera liberdade de expressão. Tudo seguido (monitorado?) por um então "escondido" presidente que sequer cumpriu a formalidade de passar o poder ao novo governo - o chamado comportamento moleque.

Agora, nestes 10 meses do governo eleito em novembro 2022, os relatos do militar Mauro Cid compõem pauta de delação premiada que nos diz: o que então nos dava medo era coisa muito maior, mais perigosa. Bem mais do que parecia. Temos, de fato, o CQD ("como queríamos demonstrar") da tentativa de golpe de Estado. E pistas, que soam ser profundas, sobre possíveis responsáveis.

Ora, considerada a natureza e a baixa qualidade do conjunto da obra governamental de 2019 a 2022, se a ação do governo eleito em novembro 2022 não fosse além do óbvio a melhora já seria - relativamente - descomunal. O novo governo logo expressou - em conjunção com todos os poderes constitucionais - compromisso com a democracia. UFA! Era o esperado, claro. Escapamos.

Aí vem a responsabilidade na reconstrução. Complicação, sim e muita, dada a configuração política do Parlamento. Além de interesses escusos, uma aguerrida extrema direita.

Em economia, deve-se atentar para a realidade: paradigma não se muda por decreto ou vontade governamental. Gastos têm a devida importância. Responsabilidade fiscal não pode se ausentar. Política monetária também importa. Expectativas e comportamento dos agentes econômicos (inclusive o personagem 'Consumidor') são parte do processo. Aspectos básicos do funcionamento economia.

No campo da política, respeitar a democracia vai além de declarar apreço por princípios basilares. Certos erros não devem ser cometidos, embora o sistema seja capaz de compensar e reduzir danos. Mas, a ideia básica deve sempre ser a de minimizar erros, e buscar consertá-los, sempre que seja o caso.

E cabe notar que todos os votos eleitorais importam: os dos francos apoiadores, os contrários (dos opositores) e os "só tu, vai tu mesmo", porque o outro já se sabia, ao custo de grande desconforto, quem era e o que sabe fazer. Todos os eleitores devem ser respeitados. Não se deve dialogar apenas, ou preferencialmente, com a claque apoiadora.

Mas, vieram erros inesperados - em se tratando de um presidente com larga margem de experiência. De quem se espera maturidade, depois de tortuosa rota política. Primeiro, a demora em sair do palanque, mantidas insistentes referências ao derrotado. Segundo, o falar preferencialmente com os aguerridos apoiadores. Depois, uma arenga com o Presidente do Banco Central - saga quase que somente pessoal - com diatribes contra "a alta taxa de juros", a tal Selic. No entanto, cá estamos com juros em descenso, ao ritmo de decisões técnicas do Conselho de Política Monetária. O PIB, com projeção melhor do que se esperava, embora isso se deva a vários fatores, inclusive o desempenho do setor agrícola. E inflação que não assusta.

Mais preocupante é o que está se dando em área bastante delicada: as âncoras fiscais. Claro, em contexto em que negociações com diversos interesses no Parlamento trazem resultado não imputável apenas ao presidente. Mas a vertente dos gastos vai se expandindo, sem segurança de que receitas compatíveis com tal expansão terão lugar. Pior, na definição de instrumentos de responsabilidade fiscal, foi ainda mais enfraquecida a prudência inaugurada em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal: agora, abolidas as então instituídas penalidades para gestores públicos. Há contaminação de expectativas, trazendo insegurança sobre sustentação da relação dívida/PIB. Um temerário escorrego.

Por fim, um insulto à democracia. Trata-se do 'bebê de Rosemary' chamado Comitê de Defesa da Democracia (CDD). Algo que teve gestação no Senado e que, portanto, não pode ser imputado ao Governo e, muito menos, diretamente ao Presidente. No entanto, sabe-se que este é contumaz esbravejador contra "a mídia" e sonha com o tal de "controle social" da dita cuja. O Senado pode ser conveniente abrigo para esse jabuti. Isso, no país cuja democracia sobreviveu às tramoias aceleradas nos últimos meses de 2022; sim, um ente que efetivamente usou seus vários braços para estancar a aventura anti-democracia. Não tem pra quê um CDD.

O coletivo de cidadãos que exercem certo estoicismo, em que me incluo, vem segurando as pontas. "Esperemos para ver se melhora, quem sabe?". O Brasil precisa, sim, deixar de merecer a alcunha de 'perdedor de oportunidades'.

Tarcisio Patricio, doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.

 

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