Opinião

"Retratos Fantasmas" e o Patrimônio Histórico-Cultural

"Retratos Fantasmas" é uma declaração de amor ao cinema e às suas raízes

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VALDECIR PASCOAL

Publicado em 30/09/2023 às 15:55 | Atualizado em 30/09/2023 às 16:43
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O novo filme-documentário de Kleber Mendonça Filho (KMF), “Retratos Fantasmas”, é uma declaração de amor ao cinema e às suas raízes. O cenário é o Recife, por onde ele vê e fala para o mundo, como Fernando Pessoa, ao anunciar “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver o mundo”, ou Cícero Dias que, pernambucanamente, retratou: “Eu vi o mundo... Ele começava no Recife”. Não por acaso, após o sucesso de suas produções anteriores – “O Som ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau” –, a nova película, aclamada em Cannes, representará o Brasil no próximo Oscar.

Na primeira parte, o espaço da emoção é mais intimista. Ele apresenta a mãe historiadora, o apartamento da família, cenário de afetos e de gravações pessoais e profissionais, a vizinhança, a rua e os sons ao redor, incluindo o latido do cão da casa ao lado e o silêncio corrosivo dos cupins.

O segundo espaço que sobrevém é o resgate da memória dos cinemas de rua do Recife: “Trianon”, “Moderno”, “Art Palácio” e o único ainda em atividade, o “São Luiz”, que ostenta uma belíssima decoração, destacando-se o mural na entrada, de Lula Cardoso Ayres, e os dois vitrais com motivos florais, de Aurora Lima, emoldurando a tela principal do seu imponente salão.

As edificações glamourosas das primeiras décadas (anos 30 a 70), com o deslocamento do eixo econômico para outras áreas da cidade, foram sendo substituídas por igrejas, galerias, farmácias ou mesmo por nada, restando apenas vestígios. Salas consagradas entrando no modo “fantasma”, tendo por testemunha a lente atenta e assustada de um jovem cineasta. O momento mais tocante é a gravação com seu Alexandre, operador de projetor do “Art Palácio”, no dia em que as cortinas daquele outro “Templo da Sétima Arte” foram baixadas pela última vez.

Nessa hora, com os óculos embaçados, lembrei-me de Salvatore (Totó) e Alfredo, personagens do filme “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro (1988), igualmente uma ode ao cinema. Os óculos molharam-se de vez quando, num pensamento, viajei para o “Cine Paroquial” de minha infância.

Mas há outro importante espaço realçado em “Retratos Fantasmas”: o centro urbano do Recife. Ao caminharmos pelas lentes do diretor, em meio à beleza estonteante do casario colorido, das pontes e do Rio Capibaribe, em imagens de ontem e de hoje, somos tomados por um certo travo de amargura e de nostalgia. A conclusão é de que, em muitos aspectos, ao longo das últimas gerações, nós regredimos no desafio de manter e preservar o patrimônio histórico e cultural, a despeito de avanços pontuais e da histórica escassez de recursos. Constatação que se aplica, diga-se, a outras metrópoles brasileiras e a cidades históricas de menor porte.

Estamos, pois, diante de um dever-desafio coletivo: de governos (Federal, Estadual e Municipal), sociedade, proprietários privados e, acrescento, dos órgãos de controle, como os Tribunais de Contas. A Constituição, artigos 23, 30 e 216, traz os comandos que devem nortear as ações de todos esses atores. Ela diz que constituem o patrimônio cultural brasileiro os bens materiais e imateriais portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade, nos quais se incluem as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais e os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Exige, ainda, que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, proteja esse patrimônio por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de preservação.

Ressalto o papel dos Tribunais de Contas, que, no controle patrimonial da gestão pública (CF, art. 70), devem atuar para assegurar a máxima observância das normas que protegem esses patrimônios, estabelecendo um diálogo direto com os gestores públicos, capacitando servidores e realizando auditorias operacionais e de conformidade para avaliar a eficiência e a regularidade das políticas públicas na área. O TCE-PE, por exemplo, foi um dos órgãos pioneiros na realização de auditorias em sítios históricos, além de ter editado uma cartilha de orientação para os gestores (veja a cartilha: bit.ly/3PwaeXF).

Volto a “Retratos Fantasmas” e ao seu último espaço-sentimento, o da imaginação. A inspiração é a cena final do filme, um misto de realidade, magia, saudades, lamento e sonhos. Nele, o diretor entra em cena e, ao som do trompete de Herb Alpert, na música “Rise”, dialoga com um motorista de aplicativo enquanto rodam paisagens da cidade, por vezes, adormecida e invisível. Salto, numa pisada só, para o passado e para o futuro. Ao som de “Recife, Cidade Lendária”, de Capiba, eu me vejo caminhando, seguro, ao lado de meu saudoso pai (que morou em Recife nos anos 40) e de futuros netos, encantados com a revitalização do lugar, de sua história, de nossas memórias e com o novo progresso sustentável. “A cidade se transforma a cada ano, isso é certo.” (KMF).

Valdecir Pascoal, Conselheiro do TCE-PE

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