A sorte está lançada!
O sorteio não é o abandono à vontade dos deuses: é nossa crença de que somos todos iguais e de que temos as mesmas oportunidades, independentemente dos recursos proporcionados pela condição de classe
Meu querido amigo e ex-colega do Colégio de Aplicação, o músico Zeh Rocha, me pergunta o que eu acho da decisão tomada pela direção daquele Colégio - e aprovada pelo Conselho Universitário- em que a seleção de seus alunos, desde a 6° série e para a as vagas remanescentes e ociosas, se fará, doravante, através de sorteio, respeitando o sistema de cotas em suas diferentes modalidades.
O tema, claro, é controverso já que a ideia de entregar a Deusa Fortuna (sorte) o destino escolar de nossas crianças, numa escola considerada a melhor do país em sucessivas avaliações institucionais, seria supostamente absurdo, irracional e injustificável. Não acho! Embora compreenda o "chororô"!
Não preciso repetir que o acontecimento mais importante de minha formação foi ter estudado no Colégio de Aplicação (à época Ginásio), entre os anos de 1968 e 1974 e, claro, na minha turma não havia nenhum, repito, nenhum aluno das "classes populares", ou, para agradar meus amigos gramscianos, oriundos das "classes subalternas": todos, absolutamente todos, vinham das camadas médias intelectualizadas e liberais, com condições de pagar cursos preparatórios para o antigo "exame de admissão" ao Colégio. Eu mesmo o fiz o curso da rigorosíssima Dona Maria José Guimarães, ali na Virgínia Loreto em Parnamirim, na companhia de Emanuel Pedrosa, Hélio Lúcio de Souza, Caetano Coimbra, André Luiz Lôbo Freire, Flávio Bittencourt, Ricardo Pimenta, Romero Portela... (o antigo Ginásio de Aplicação, até 1969, era exclusivamente masculino e não me lembro de nenhum aluno negro!).
A ideia do SORTEIO para a escolha de pessoas e tomada de decisões públicas vem da Grécia Antiga, quando a Assembleia decidia (às vezes por aclamação!) os cargos públicos (salvo o Basileu religioso e o militar, escolhido por "competência). "COMPETÊNCIA": é aqui onde a porca começa a torcer o rabo! O susto que aquela decisão provocou nas pessoas que advogam a seleção -aliás, não apenas rigorosíssima mas penosa para nossos jovens- é o velho e repetitivo argumento da MERITOCRACIA, embora nem sempre declarado.
"-Brayner, você é contra o mérito, o esforço pessoal de nossos jovens, o talento individual que nos diferencia uns dos outros e que merece recompensa e reconhecimento?"
"- Não, não sou! Mas mérito é uma coisa, meritocracia é outra completamente diferente. E é isso que está em jogo aqui!"
Reconheço que as pessoas têm talentos individuais diferentes, vocações e potenciais distintos. Mas a MERITOCRACIA é, propriamente falando, uma ideologia, derivada do individualismo liberal da modernidade burguesa, e que "ignora" (!) que, primeiro, o talento individual é histórico (um homem talentoso na Idade Média não seria avaliado da mesma forma na Modernidade ou na sociedade ultraliberal) e, segundo, o talento individual não é uma condição exclusivamente subjetiva e depende das condições sociais em que vivemos, das oportunidades educacionais que nos são oferecidas e das disposições emocionais e intelectuais que daí derivam: sem individualismo moderno não existe a ideia de "mérito" que, diga-se logo, não é uma "qualidade": é o reconhecimento social de um predicado subjetivo, de uma qualidade pessoal, segundo critérios impostos por determinados valores dominantes, hoje apoiados no "mercado"! O que a ideologia meritocrática esconde (e toda ideologia "esconde" algo, opera através do impronunciável!) é que, se eu nasci com talentos, nasci também numa classe social que me permitiu fazer os caríssimos cursos preparatórios para o ... Colégio de Aplicação: talento e esforço individual exigem condições econômicas e sociais para se expressar!
O Colégio de Aplicação é o melhor exemplo que temos de uma escola de altíssima qualidade e a experiência do sorteio já havia sido experimentada sob a direção de Socorro Ferraz, e ampliada na pandemia e, pasmem, queridos meritocratas, os alunos que entravam através de sorteio ou cotas rapidamente se adaptaram ao padrão de qualidade e não tinham dificuldade em continuar sua escolarização. Mas o bom mesmo dessa história era vir das classes abastadas, fazer o preparatório, entrar no CAp e, ao se apresentar no ENEM, declarar vir da "escola pública" e entrar nas cotas que levam ao Olympo universitário: a Faculdade de Medicina! Que mérito! Que percurso! Que destino escolar! Como disse, a meritocracia é uma ideologia e como toda ideologia "inverte" as coisas: aqui, o "social" objetivo (as condições e oportunidades oferecidas) aparece como "individual" (talento, esforço), um dado subjetivo. E se você, meu leitor, meritocrata, acha tudo isso um absurdo, sugiro que matricule seu filho numa escola do estado ou do município, que você crê de inferior qualidade, e continue a acreditar que o talento e o esforço do seu filho vencerá as dificuldades estruturais de nossa escola pública.
O sorteio não é o abandono à vontade dos deuses: é nossa crença de que somos todos iguais e de que temos as mesmas oportunidades, independentemente dos recursos proporcionados pela condição de classe.
A MERITOCRACIA, AFINAL, É UMA TAUTOLOGIA: QUEM TEM MERECE, QUEM MERECE TEM!
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE