O propósito nos tempos de hoje
Falta de propósito ou depressão, o mundo está difícil. Somente a arte para suportar
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A vida sem propósito é desgraçada. Propósito é a energia vital. Às vezes, a gente tende a pensar que não faz sentido: a plêiade de problemas da humanidade, o drama dos refugiados, a fome, a guerra, a sujeira das mentalidades retrógradas - vejam a discussão sobre banheiro unissex sobrepondo-se à elementar necessidade de saneamento básico para milhões de pessoas -, os crimes bárbaros, a tortura, a pedofilia, o avanço da direita reacionária, a fragilidade das democracias, a falta de cultura, meu Deus, a falta de cultura está me matando, é raro encontrar alguém voltado a literatura, por exemplo; encontramos pessoas que leem, é certo, mas a literatura como arte não existe mais, as artes plásticas, então, e o que dizer da música?
Nos últimos tempos, a música anda às voltas com a vida dos artistas, é o affaire de Luiza Sonsa, o affaire de Anitta, e o sucesso está com um tal de Thiaguinho, que mobiliza milhões de pessoas, isso sem falar no sertanejo que não tem a mínima sutileza do brega poético. Sim, loas ao brega, que o brega é o renascimento dos 50.
Tudo isso dá depressão, que se assemelha à falta de propósito. É como não fizesse sentido acordar para o mundo. E a ação não se encaixa. Falta reconhecimento, identidade. E aí falta crença, fé e, óbvio, propósito. Nem o sentimento de desconstrução resolve.
Dois personagens importantes, entre muitos outros, tiveram crise de propósito. Ou depressão.
Destaco, em primeiro lugar, Leonardo Da Vinci. Foi durante o período em que tentava terminar A adoração dos magos e São Jerônimo no deserto que ele escreveu que os dias eram miseráveis, dos quais deveríamos apreciar o fato de eles não se dissiparem sem abandonar qualquer lembrança sobre a nossa existência na memória dos homens. Estava em Florença, onde viveu 18 anos, sua produção de então e a posterior demonstram a superação.
Outro personagem que viveu uma época aparentemente sem propósito, ou com depressão, foi Beethoven. A devastação da deficiência auditiva que se foi consumando com o tempo tornou impossível a continuidade da sua carreira de virtuose. Não pôde prosseguir nas apresentações, tendo mais da metade de sua renda comprometida. Mas foi a partir daí que surgiram as grandes sinfonias.
Beethoven sofreu o diabo, e o famoso Testamento de Heiligenstadt sugere que teve ânsias suicidas, mas o talento e, sobretudo, a disciplina foram definitivos para a composição de suas grandiosas sinfonias. Disse ele: A minha arte foi a única coisa que me impediu de cometer suicídio. Oh, para mim, seria impossível deixar esse mundo antes de ter produzido o que eu sentia capaz de produzir, e assim prolonguei essa existência desgraçada.
Ainda bem, porque neste mundo cheio de malucos, em que descobrir propósito já passou a ser privilégio, posso apreciar A Última Ceia e botar para tocar o quinto movimento da sexta sinfonia. Já é propósito bastante para suportar a depressão de viver nossos tempos.
João Humberto Martorelli, advogado