Violência descontrolada na Bahia
A Bahia apresenta problemas crassos desde finais da década de 1990. O governo federal, a cada crise mais acentuada da segurança pública, apresenta um novo plano para tentar apaziguar um contexto social contaminado pela violência
Desde finais da década de 1990 a violência é problema recorrente nas várias administrações baianas. Entre 1999, com pouco mais de 900 assassinatos, até 2022, ano que foram registrados mais de 6.500 Mortes Violentas Intencionais (MVI; que são a soma dos homicídios dolosos, dos latrocínios, das agressões seguidas de morte, das mortes de policiais e das mortes decorrentes de intervenção policial) a explosão da violência vitimou milhares de pessoas e o incremento percentual ultrapassou os 620% na variação do período. Não é problema exclusivo do atual governo da Bahia, mas do Estado como condutor de políticas públicas de segurança em várias gestões irresponsivas.
Quando o Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, falou que o atual quadro endêmico de violência na Bahia era resultado da política de flexibilização de acesso às armas de fogo do ex-presidente Bolsonaro, veio a necessidade de esclarecer o equívoco dessa fala além da relação inversa entre uma coisa e outra. A flexibilização às armas coincidiu com o decréscimo dos homicídios, inclusive na Bahia. Contudo, mais ou menos armas não explicam a dinâmica dos homicídios.
Na Bahia, a inércia das instituições coercitivas - polícias, ministério público, judiciário e sistema carcerário, que formam o sistema de justiça criminal e de segurança pública - foi fator principal da explosão da violência que assola os baianos há décadas, o que corroborou para o alto índice de criminalidade proporcionada pelas facções criminosas.
Analisando os principais indicadores de segurança pública da Bahia, todos apresentaram recuo de ações nos últimos anos. Houve diminuição das prisões, não obstante o crescimento da criminalidade, principalmente entre os anos críticos de 2016 e 2017. Diminuição também no combate/controle do narcotráfico com queda na apreensão de drogas, mesmo numa realidade na qual as mortes em decorrência de intervenção policial alcançaram números recordes, como o ano de 2022 no qual houve mais de 1.400 mortes violentas provocadas em ações da polícia. Queda na apreensão de armas de fogo ilegais, que se apresenta como variável importante de controle e tem base na política nacional de controle de armas de fogo. Por fim, a queda nos investimentos com redução de gastos per capita em segurança pública.
O dado mais impactante é a quantidade de MVI entre 2017 e 2022. Houve 39.753 MVI no estado, com o ápice no ano de 2021 no qual houve mais de sete mil assassinatos. Das dez cidades mais violentas do país, segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, seis são baianas. Com destaque as quatro primeiras: Jequié, com 88,8 MVI/100 mil; Santo Antônio de Jesus, com taxa de 88,3/100 mil; Simões Filho, com taxa de 87,4/100 mil; e Camaçari, com taxa de 82,1/100 mil.
A Bahia foi o estado do país onde mais a polícia matou. Foram 1.464 mortes decorrentes de intervenção policial, em 2022, ficando na frente do Rio de Janeiro, estado que sempre esteve à frente nessa cifra. As mortes resultado de ação policial é um termômetro da falência do Estado no controle da violência. Essas ações violentas por parte dessa instituição/organização coercitiva numa realidade de retração das políticas de controle da violência é um sinal falimentar do estado de direito.
No Brasil, a criminalidade violenta chegou a um patamar insustentável para o bom andamento social e, por sua vez, da própria democracia, já que não existe democracia consolidada sem estado de direito e este não sobrevive a violência descontrolada.
Na Bahia, os dados são mais do que preocupantes e se nada for feito de real, porque as medidas trazidas pelo governo federal não passam de remédios paliativos inúteis, há um sério risco de forte emigração do estado que levem a falência do sistema social, político, econômico e cultural. Não tem como existir atividade humana numa realidade de total descrédito do cidadão em suas instituições político-sociais. A qualidade de vida de uma sociedade está atrelada a qualidade do funcionamento do estado de direito.
O estado de direito é um conjunto de regras formais que devem moldar as ações dos indivíduos em sociedade. Tais regras devem salvaguardar direitos civis, políticos e sociais, sobretudo os dois primeiros, nas quais o direito à vida é o primeiro e mais elementar direito de propriedade. Numa realidade de violência gratuita e desmedida, a falência do estado de direito gera perturbação social, medo da morte violenta e falhas drásticas na manutenção da ordem pública como bem coletivo.
A Bahia apresenta problemas crassos desde finais da década de 1990. O governo federal, a cada crise mais acentuada da segurança pública, apresenta um novo plano para tentar apaziguar um contexto social contaminado pela violência há décadas, com medidas paliativas e parcos recursos.
Outro aspecto, é o envio da Força Nacional de Segurança Pública, um aglomerado de policiais advindos dos estados membros da federação que, na verdade, é uma organização intermitente. Não existe formalmente uma Força Nacional aquartelada, com trezentos ou mais homens, disponíveis para momentos de crise social de violência. Um engodo inútil que não resolve o problema profundo da falta de segurança pública do país.
Urge um pacto federativo para o combate ao narcotráfico e ao desmantelamento do crime organizado. Este já ultrapassou os muros dos presídios há muito tempo e hoje domina várias áreas na sociedade e na política. Como bem avaliaram os cientistas políticos Scott Mainwaring e Aníbal Pérez-Liñán, ambos professores/pesquisadores da University Notre Dame, que na América Latina, o crime organizado, o tráfico de drogas e os homicídios são partes da realidade dos sistemas sociais e políticos da região e afeta a qualidade dessas democracias. Com raras exceções, os países latino-americanos retrocederam drasticamente os seus regimes políticos em muito relacionado à violência.
A Bahia é mais um fenômeno que sabemos quais são as causas e as possíveis saídas para o fracasso no controle da violência, mas os atores políticos que dominam o poder no Brasil contemporâneo não são responsivos perante o cidadão e muito dificilmente irão dirimir essa praga que é a violência epidêmica no país.
José Maria Nóbrega - Doutor em Ciência Política pela UFPE; Coordenador do NEVCrim/UFCG/CNPq