OPINIÃO

A democracia desafiada

O título do artigo toma emprestada a definição da obra magistral do cientista social, Doutor em ciência política pela USP, pós-Doutor pela Universidade de Roma e Professor Titular de Teoria Política da UNESP, Marco Aurélio Nogueira

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GUSTAVO KRAUSE

Publicado em 08/10/2023 às 4:08
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Nas duas últimas décadas, a radicalização política, as ameaças à democracia e a emergência das múltiplas face do populismo têm sido objeto de pesquisa, estudo e obras sobre um ciclo de expansão do autoritarismo o que alguns autores denominam de “recessão democrática”, termo criado por Larry Diamond (1951).

O título do artigo toma emprestada a definição da obra magistral do cientista social, Doutor em ciência política pela USP, pós-Doutor pela Universidade de Roma e Professor Titular de Teoria Política da UNESP, Marco Aurélio Nogueira, articulista do jornal Estado de São Paulo.

“Este não é um livro acadêmico [...] Trata-se de um ensaio”. Com todo respeito, permito-me discordar. O autor deu leveza à profundidade acadêmica. Na dosagem exata. Estão presentes atualíssimos autores ao lado de dois clássicos de mentes brilhantes: Antonio Gramsci e Noberto Bobbio, dos quais é o fiel tradutor de Cadernos do Cárcere e de quase uma dezena das obras de Bobbio.

O que primeiro me chamou a atenção foi o adjetivo “desafiada” , adicionado ao subtítulo: recompor a política para um futuro incerto. Ai estão as revelações da essência da obra: Democracia, Política e Futuro.

Ao agregar “desafiada” o autor qualifica as entranhas da democracia que estão impregnadas de contradições. Para cada valor que lhe dá sustentação há o correspondente risco da negação: a liberdade individual tem como inimiga gêmea a opressão; a diversidade tem como inimiga íntima a homogeneidade estéril e assim por diante.

Outra valiosa distinção: a metáfora da “erupção vulcânica”, uma larva abundante que contamina o ambiente globalizado. Ainda que contida, deixa pílulas tóxicas por onde passa.

Marco Aurélio não somente conceituou com precisão a “hipermodernidade” no capítulo sobre “sustentabilidade” como buscou na sabedoria de Edgar Morin a ideia de “decrescer”, prosperar sem crescimento, um aparente oxímoro “decrescer crescendo”, ou seja, provocar a reflexão da “arte de bem viver”, um diálogo com o mundo e a natureza.

Na linha das provocações, o autor cita a concepção do filósofo francês Serge Audier (1971), o “Eco-republicanismo”, na defesa de “ecologizar a politico ou politizar a ecologia”. Acrescenta ao debate o premiado ensaio A Sexta Extinção (2015) no qual a autora, Elisabeth Colbert (1961), registra que o tamanho do impacto humano (era do Antropoceno) resultou na potencial destruição do planeta.

A rigor, nada parece escapar ao olhar do Autor. Apresenta várias definições, formas (e deformidades) da democracia. Desde o conceito procedimental e minimalista de Bobbio à “poliarquia” de Robert Dahl (1915-2014) e à síntese de Adam

Prezworski (1940): “É um sistema no qual ocupantes do governo perdem a eleição e vão embora”.

Ao analisar a democracia desfigurada, a democracia polarizada (entre antagonismo e agonismo), o autor descreve paralelamente a crise de representação partidária, a antipolítica, os efeitos da revolução tecnológica, o quadro real da apropriação do poder pela investida salvacionista dos populismos e dos movimentos a partir da revolução digital e da questão identitária.

Na verdade, a democracia não se limita a um regime político: é uma forma de sociedade cuja coesão depende de laços de confiança pessoal e institucional. Estão fragilizados por conta da antipolítica. Nesta sentido, o autor recorre à proposição de Pierre Rosavallon (1948) no livro A Contrademocracia – a política na era da desconfiança: “Daí, compensar a erosão da confiança através da organização da desconfiança”.

Sobre a desigualdade, o autor fulmina: “é o veneno contra a boa sociedade”. No sentido inverso, situa a educação cívica e o aprendizado nas escolas, espaços abertos para uma formação socioafetiva, como pressupostos para aquisição de saberes e a incorporação de virtudes capazes de unir solidariamente as pessoas.

Ao concluir, o livro propõe uma “democracia aberta para o futuro”. Não se trata de simples texto: é um manifesto político em favor do bem inalienável que é a democracia.

Algumas passagens merecem transcrição: “quando se está em transição sistêmica, na qual não é clara a transição que tomaremos nem os rumos que os processos seguirão – quando ‘o velho morre e o novo não pode nascer’ (Gramsci) – verificam-se ‘fenômenos patológicos’ em todas as instâncias da vida [...] Um campo democrático generoso e renovador é uma construção complexa [...] A seu favor, possui um bom elenco de valores grandiosos que podem se universalizar: justiça social, liberdade, tolerância, igualdade, direitos, regulação da economia. Esses valores continuam ativos e operantes [...] Os desafios estão dados. O futuro já começou, e vem vindo em alta velocidade.

Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco

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