OPINIÃO

Sobre o "diálogo" na educação (3° parte)

Não é difícil a defesa da tese de que, mesmo adultos, continuamos a nos educar

Imagem do autor
Cadastrado por

FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 10/10/2023 às 0:00 | Atualizado em 10/10/2023 às 6:35
Notícia
X

No ensaio A Crise na Educação (Arendt) encontramos a seguinte frase: « A educação não pode desempenhar nenhum papel na política, pois na política lidamos com adultos que já estão educados. Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade política. Como não se pode educar adultos, a palavra « educação » soa mal em política; o que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força ».

A passagem acima é decididamente surpreendente para a sensibilidade pedagógica brasileira acostumada desde, pelo menos, os anos 60, a ouvir falar, através da obra de Paulo Freire (e de toda a aura mítica que a recobre). Freire defendeu acertadamente, até o final de sua vida, uma posição pedagógica « dialogal », porém -sublinhemos- Freire tratou essencialmente de alfabetização de adultos. Mas a profunda crença que ele depositava no poder desvelador e libertador da palavra e na simetria que ele identificava entre educador e educando, ambos portadores de uma experiência de mundo, nunca impediu que, em seu pensamento, se forjasse uma problemática distinção entre consciências : uma « crítica », capaz de se perceber como tal e de perceber no outro -o popular- a sua « ingenuidade », e uma « consciência ingênua » incapaz de se perceber como tal (se ela o fizesse não seria mais ingênua !) e, portanto, carente de trânsitos (« consciência transitiva ») para níveis superiores de « conscientização ». A fórmula, sabemos, remonta a Kant e ao seu conceito de « esclarecimento »: nele está presente uma incapacidade de se dar a própria norma, o que ele chama de menoridade, resultado essencialmente do medo de usar a própria razão que, uma vez superado, nos conduziria à maioridade. Daí, a célebre divisa kantiana: « Sapere Aude ! ». No entanto, uma forte tensão permaneceu presente no pensamento de Freire : de um lado, uma simetria « ontológica » entre educador e educando, permitindo a realização do diálogo, só possível entre iguais (daí, a assertiva de Freire de que « Ninguém liberta ninguém ; os homens se libertam em comunhão »); mas, por outro lado, as consciências em diálogo, que se encontram para desvelar o mundo, possuem status diferentes, tendo uma delas o privilégio cognitivo que possui, aliás, o próprio Freire : a competência crítica.

Paulo Freire tenta solucionar a tensão através do conceito de Práxis (« ação e reflexão sobre a ação ») num sentido bem mais próximo de Kant do que, por exemplo, de Marx ou Gramsci. Nem no domínio exclusivo da ação - a tentação do ativismo-, nem da simples palavra -pecado de verbalismo; mas numa ação (política? moral?) continuamente corrigida por uma razão reflexiva, centrada no sujeito que dialoga com o mundo, consigo e com os outros.

Vejam, por exemplo, a utilização da noção de « diálogo » aplicada à educação infantil, muito frequentemente interpretada por professores e educadores de escolas elementares em meio popular, como uma prática pedagógica que parte do « mundo do aluno » expresso em sua « palavra », aceita, muitas vezes, como a única a recobrir a realidade dos desfavorecidos. Como se o valor do ato de exprimir fosse equivalente ao conteúdo expresso! Isto gerou muitos mal entendidos e só bem tarde (Pedagogia da Esperança) é que Freire vai procurar reatar os nós desfeitos com o sucesso e com a banalização incontroláveis de seu opus major.

No entanto, devemos acolher tranquilamente a tese de que entre adultos não há educação? Acho que é perfeitamente aceitável o fato de que a educação pode se constituir num processo durável e permanente na nossa existência, quer dizer, extensível para muito além da vida infantil, o que pode não acontecer com a educação formal (escolar); e aceitando, ainda mais, que não se trata exclusivamente da educação intelectual, nem apenas do que Cícero chamou de excolere animum (a educação do espírito), mas também de uma educação afetiva e emocional, como autoconhecimento. Penso, assim, que não é difícil a defesa da tese de que, mesmo adultos, continuamos a nos educar.

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

 

Tags

Autor