OPINIÃO

Lisboa, a Lisótima

Em resumo, dá prazer viver em cidades como essa. Ou passar tempos, de quando em vez. Para, sobretudo, respirar civilização. Por isso vale dizer que ela é mesmo ótima.

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JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHOjp@jpc.com.br

Publicado em 13/10/2023 às 0:00 | Atualizado em 13/10/2023 às 6:23
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Em cada cidade vivem duas cidades, uma por dentro da outra. A primeira, e mais evidente, é a dos Cartões Postais arquitetura, igrejas, museus, parques, ruas, mares, rios. Carlos Pena Filho, nosso Poeta do Azul, até disse isso em belo poema (Olinda): "Olinda é só para os olhos/ Não se apalpa é só desejo/ Ninguém diz é lá que eu moro/ Diz somente é lá que eu vejo".

Só que, ao lado desta cidade feita para se ver, há também uma outra, que habita aquela primeira com gente, lugares especiais, um jeito próprio de ser, as conversas, restaurantes (não os frequentados por turistas), mercados públicos de bairro entre eles, nosso preferido é o de Campo de Ourique. A cidade é a mesma. Só que diferente. E mais calorosa é a segunda, por ser povoada por amigos.

Com frequência nos perguntam por que tanto gostamos de Lisboa. A Olissibona dos Romanos, até quando foi tomada pelos Mouros, passando a ser Aschbouna. Mas só até 1147 quando, após cerco de três meses, foram afinal vencidos. E o nome da cidade passou a ser o de hoje. Aquela mesma de que falava Camões, nos Lusíadas (Canto 57), "E tu nobre Lisboa, que no mundo/ Facilmente das outras és princesa". E Fernando Pessoa define (em Lisbon Revisited I) como "uma eterna verdade, vazia e perfeita". A que o compadre Marcos Vilaça, confrade querido nas Academias Pernambucana, Brasileira e Portuguesa de Letras, chama não de Lisboa, mas de Lisótima.

As respostas óbvias são o pouco tempo de avião para chegar lá, pouco mais de 6 horas. Ou o fato de pertencer a um belo país. Ou o clima, com quatro estações bem definidas, permitindo à noite usar paletós ou suéteres. Ou por ser realidade bem distinta da do Recife, com horários para dormir e acordar que são outros. Só que é mais.

A culinária, por exemplo, é única. Peixes, por conta da temperatura (fria) da água, são mais rijos e mais saborosos. Mesmo quando da mesma espécie, como por exemplo a Garoupa. Carnes têm cortes que não são os mesmos. E variedades muitas. Crustáceos que não temos percebes, búzios, lavagantes, amêijoas (melhor é à Bulhão Pato). Siris enormes, Santolas, Sapateiras. E camarões: desde bem grandes, como o Tigre; até o melhor de todos, de uma praia juntinho do Porto, o Espinho.

Você pode atravessar as ruas, nas faixas de pedestres (conhecidas como passadeiras), sem susto. Carros param, inclusive os apressadinhos, todos, até que você passe. Em respeito aos que andam a pé. Chance zero de isso não acontecer. Nas ruas, há barracas onde se vende frutas o ano inteiro. Sardinhas, nos meses quentes. E castanhas portuguesas, quando faz frio. Só lamento é que não haja milho, cozido ou assado, por lá. Mas, quem quiser comprar algo, tem que entrar numa fila. E esperar. Que só será atendido quando chegar sua vez.

Lombadas não são como as do Recife, que parecem feitas só para quebrar os amortecedores dos carros. Quase sempre sem pinturas no chão ou placas nas calçadas, avisando. E deveria, se o objetivo fosse mesmo diminuir a velocidade dos veículos. Em troca, temos pequenas elevações e, a seguir, algo como um ou dois metros para, no fim, voltar a essa rua. Tudo bem suave. Quem quiser saber como é vá ao Shopping RioMar que, bem na entrada, vai ver uma dessas.

Não há tantos acidentes de motos, por lá. Ou quase não há. Vedado ziguezaguear, entre faixas, sob pena de multa cara, 1.250 euros (quase 10 mil reais). Em Lisboa, motos ou bicicletas são considerados transportes públicos. E, em princípio, devem trafegar só nas faixas dos ônibus (hoje, há 42 quilômetros dessas faixas em Lisboa). Sem riscos de virem para cima dos carros. O motociclista perde um pouco de tempo, no trânsito; mas, em compensação, não perde braços, esperanças, pernas, sonhos, a própria vida.

O nome dos bairros são especiais: Alcântara, Alfama, Bairro Alto, Benfica, Graças, Lapa, Madragoa, Mouraria, Olivais, Pastelo, São Vicente. Ou das ruas: Beco da Bicha, Beco da Serra, Campos das Cebolas, Largo da Graça, Largo das Portas do Sol, Largo do Chafariz, Pátio das Damas, Rua da Alegria (onde morava Duda Guennes), Rua da Bela Vista, Rua da Cozinha Econômica, Rua da Mãe D'água, Rua da Prata, Rua da Rosa, Rua da Voz do Operário, Rua das Chagas, Rua das Flores, Rua do Ouro, Rua do Paraíso, Rua do Salvador, Rua dos Sapateiros, Travessa da Água da Flor, Travessa da Esposa, Travessa da Portuguesa, Travessa do Fala Só. Como se fosse quase poesia.

À noite, voltando de um restaurante mesmo nas madrugadas, você pode sentar num banco de praça para conversar. Sem riscos de ser assaltado. Trata-se de uma experiência e única, sobretudo para quem mora nas grandes cidades brasileiras. A de se sentir em segurança, nas ruas.

Em resumo, dá prazer viver em cidades como essa. Ou passar tempos, de quando em vez. Para, sobretudo, respirar civilização. Por isso vale dizer que ela é mesmo ótima. Sonho com o dia em que ainda escreverei um artigo assim sobre a cidade onde vivo. A de Carlos Pena Filho (Guia prático da cidade do Recife), "Recife, cruel cidade/ Águia sangrenta, leão". De Manuel Bandeira (Evocação do Recife), "Recife das revoluções libertárias/ Recife sem história nem literatura/ Recife sem mais nada/ Recife de minha infância", aquela em que se fala "a língua errada do povo/ A língua certa do povo". A de Ledo Ivo (Recife), "Amar várias mulheres / Amar cidades só uma Recife...".

José Paulo Cavalcanti Filho, advogado 

 

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