OPINIÃO

Por um Departamento de Teatro na UFPE

Não se trata de reparar uma injustiça histórica: trata-se de oferecer, nos quadros da UFPE, a autonomia necessária para um curso de evidente importância na discussão de uma estética politicamente comprometida em nossa cidade

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 17/10/2023 às 0:00 | Atualizado em 17/10/2023 às 7:52
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Meu amigo e colega de UFPE, Luis Reis, professor do Curso de Teatro, repreendeu-me, certa vez, pelo fato de eu me referir àquele curso como "Departamento": - "Não existe Departamento de Teatro, Brayner! Há o Departamento de Artes envolvendo os cursos de Dança, Artes Cênicas e Artes Visuais!". Cometi diversas vezes este lapso, talvez pelo fato de que não aceito, de certa forma, a inexistência de um Departamento de Teatro na UFPE com autonomia curricular, administrativa e pedagógica que, claro, não tem os mesmos objetivos e modos de funcionar dos outros dois, digamos, co-irmãos. Explico minha não-aceitação e, claro, voltarei à minha querida e inspiradora Atenas "clássica" onde o teatro ocidental surgiu.

Não é à toa que ali, entre os séculos VII° e V° a.C., surgiram três instituições formadoras de nossa ocidentalidade: a Filosofia, a Democracia e a Tragédia. Considero esta última, a Tragédia, a mãe das outras duas, e já digo porquê: Aristóteles, na 1° Parte da "Poética" (a 2° parte, sobre a Comédia, perdeu-se e ouvi dizer que Umberto Eco a encontrou!) diz que a Tragédia é a "passagem de um estado bom para um estado mau de um homem, acima do normal dos homens - um aristocrata- que, por ter praticado uma boa ação, cai numa situação de desgraça" (pensem em Édipo ou em Prometeu!). Ocorre que a tragédia trata, no fundo de uma luta agonística entre "Destino" (nas mãos dos Deuses) e "Liberdade" (auto-determinação): até aonde podemos orientar nossas vidas e nos livrar de forças que nos dominam? Tanto a Filosofia (a vida refletida que nos permite compreender a relação entre liberdade e necessidade, sujeito e objeto), quanto a Democracia (a ideia de que cabe aos homens decidir o destino da Cidade e assumir a responsabilidade) têm esta característica, digamos, agonística, de um embate metafísico.

Qual a relação entre Democracia e Tragédia, a arte teatral por excelência? B. Brecht (1898-1956) achava que o teatro era a mais política de todas as artes, porque nele, é possível não apenas viver vidas vicárias, mas colocar-se no lugar do outro (o "pensamento representativo" de Kant): não se trata do simples "representar", mas do "apresentar" algo (uma época, uma ideia, uma vida com sua agonística própria) e, ao mesmo tempo, poder "ser visto" (o espectador), avaliando e julgando: estamos diante daquelas exigências típicas do legítimo espaço público democrático, onde deveríamos (!) ser vistos, ver, ouvir e ser ouvidos para a constituição de um mundo comum. Não é sem razão que o teatro e os atores sejam tão perseguidos nos regimes autoritários!

Pernambuco, e o Recife em especial, nos anos que antecederam o golpe de 64, detinha uma das maiores forças expressionais cênicas do país, num movimento situado para além da "representação" (teatro italiano) e do texto dito "clássico": aqui, em nossa cidade, um tipo de "sociabilidade" intelectual e letrada (Dimas Veras) estava rompendo a tradicional dicotomia entre cultura popular e cultura erudita e tentando oferecer as bases de um projeto cultural autenticamente nacional, numa época em que uma ideologia nacionalista e popular fazia muito sentido. O frêmito cultural da cidade envolveu, em poucos anos, o Movimento de Cultura Popular, o Gráfico Amador, a Escolinha de Artes, o Teatro de Estudantes de Pernambuco, o Teatro Popular do Nordeste, o Teatro de Amadores (este mais antigo), o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, a Revista Estudos Universitários, a Rádio Universidade..., e nomes como Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Milton Bacarelli, Waldemar de Almeida, Luiz Marinho tiveram papel decisivo na formação de uma linguagem própria do teatro pernambucano, logo depois retomada pelo CPC's da UNE (mas com uma concepção diferente de "cultura popular" proposta por Carlo Estevam Martins) e que Augusto Boal, com seu Teatro do Oprimido (tema que lembra a Pedagogia de P. Freire) de certa forma, deu continuidade: contestava-se a noção esteticista e asséptica da "arte pela arte" para se propor uma arte engajada (uma linguagem típica da época "existencialista"), sem dirigismo político, mas problematizando a "realidade nacional"! E era assim, que Hermilo, Ariano, Aloísio Magalhães, José Carlos Cavalcanti, Joel pontes, Alfredo de Oliveira... estiveram à frente da criação, na antiga Escola de Belas Artes - ali na Benfica- do... Departamento de Teatro! Sim: ele existiu e, claro, diante da proposta considerada "subversiva" pelo nosso atávico reacionarismo, o Departamento foi fechado logo após a deposição do reitor Alfredo da Costa Lima, como me informa o professor Igor de Almeida, atual coordenador do Curso de Teatro.

Não se trata de reparar uma injustiça histórica: trata-se de oferecer, nos quadros da UFPE, a autonomia necessária para um curso de evidente importância na discussão de uma estética politicamente comprometida em nossa cidade. Espero que o Conselho Universitário tenha a sensibilidade necessária para aprovar o projeto de autonomia do Departamento de Teatro, que já tarda!

Sófocles, Eurípedes, Ésquilo abram as asas sobre a UFPE!

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

 

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