OPINIÃO

"Os loucos guiam os cegos"

Por que discutir tudo isso se estamos no Brasil, tão longe da guerra?

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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 22/10/2023 às 0:00 | Atualizado em 22/10/2023 às 20:01
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Em artigo publicado sob os efeitos da tragédia do 11 de setembro, Jorge Miranda, constitucionalista português, conclui que o terrorismo não diz respeito somente a este ou àquele Estado. Diz respeito a toda a comunidade internacional ofendida ou violentada e só deve ser vencido a partir de instrumentos jurídicos dessa mesma comunidade internacional e sem transigências com qualquer desrespeito ou degradação dos direitos humanos. Afinal, a segurança, embora seja o ambiente do Direito, jamais poderia prevalecer sobre o próprio Direito; justiça não é sinônimo de retaliação.

Reflito sobre essas inferências a partir das ações de insanidade do Hamas, que não deve ser confundido com a substância ou natureza do povo palestino. Sequer é representativo da Faixa de Gaza, embora exerça desde 2006 o controle desse território.

O Hamas é um grupo de pressão com poder político, militar e ideológico (o poder político caminha lado a lado com a religião). Seu principal objetivo é extinguir o estado de Israel, sem nenhuma preocupação com a causa palestina. O fato de haver chegado ao poder pela via eleitoral, quando expulsou o Fatah (concorrente secular), não erradica o seu ingrediente tirânico. Aliás, o grupo é alistado como terrorista pelos EUA, União Europeia e Israel. Por isso, a ação do 07 de outubro de 2023 é tida como estratégia de cunho militar despojada de fins éticos e moralmente aceitáveis.

É preciso não extrair dessas considerações uma ilação precipitada: a de aceitação da lei "olho por olho", também presente no código de Hamurabi. Em palavras mais simples, apenas a cegueira impede o reconhecimento de que Gaza se converteu num cárcere ou modalidade de asfixia de uma população que se alastra por todo o território da Cisjordânia em assentamentos irregulares. O tratado de paz de Israel com a Jordânia e os Acordos de Oslo não lograram a mudança esperada.

A mídia do mundo inteiro tem debatido a relevância das reuniões do Conselho de Segurança da ONU, agora sob a presidência brasileira. Mesmo antes do 7 de outubro, o Conselho se afogava nas águas turvas da "burocracia de palavras e expressões", daí a dificuldade de o governo brasileiro negociar a criação de um corredor humanitário para ingresso de alimentos, água e medicamentos e retirada de brasileiros confinados em Rafah. Tudo parece revelar que os indivíduos - e não as entidades que os representam - deixaram de "amar os homens para amar apenas o que os devora". A verdade é que os senhores do mundo - que se desenvolvem em todas as hierarquias ou instâncias - mesmo numa simples estrutura condominial - são criaturas cheias de solidão e com pouca grandeza. Para ilustrar essa realidade, basta conhecer, remotamente, o que se passa no momento: bombardeio recente de hospital, com autoria ainda questionada; o sequestro da população civil pelo Hamas com objetivos espúrios; o êxodo da população civil palestina. Tudo isso revela o lado mais odiento e bastardo dessa guerra e põe em prova a diplomacia e o Direito Internacional da Guerra. Aliás, a veridicidade de qualquer conflito bélico só poderá ser encontrada na face clandestina ou oculta. Nem mesmo as gerações do futuro conhecerão a verdade em sua inteireza.

Eduardo Galeano, escritor humanista uruguaio, afirmou, recentemente, que "nenhum país tem a coragem de confessar, quando está em guerra, que "mata para roubar". Ao contrário, invoca sempre razões nobres para o ingresso no conflito: Deus, paz, civilização, democracia e inimigos imaginários gerados pelos meios de comunicação para conversão do mundo num "grande matadouro". Numa referência a Shakespeare, no Rei Lear, afirma que os "loucos guiam os cegos" e que em cada minuto são consumidos três milhões de dólares na indústria militar, verdadeiras fábricas de mortos. A verdade não pode ser mascarada: "as armas precisam de guerras e as guerras precisam de armas". "E os cinco países com assento permanente e com direito a veto nas Nações Unida (EUA, China, Reino Unido, França e Rússia) acabam sendo também os principais produtores de armas. Embriagados de petróleo e com síndrome de abstinência contínua, os donos do poder ingressam na defensiva para apropriação do elixir negro, menos dispendioso e se calhar, bem mais valioso. E Galeno esquadrinha: até quando a paz mundial estará nas mãos daqueles que fazem o negócio da guerra? Até quando seguiremos acreditando que o homem nasce para o extermínio mútuo e que tal extermínio é o nosso destino? Pedindo emprestado um diálogo de John Carré, escritor uruguaio, assinala:

" - Vão matar muita gente, papai?

- Ninguém que tu conheças, filho. Só estrangeiros".

Essa confabulação serve de fecho ao artigo: por que discutir tudo isso se estamos no Brasil, tão longe da guerra?

Dayse de Vasconcelos Mayer,  professora universitária e advogada.

 

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