Aonde vás, Argentina?
O povo culto da Argentina parece condenado, nestas eleições, a escolher entre o populismo peronista e a mistificação de um outsider que pretende destruir a política e levar junto a nação, entre a esperança de, ao menos, parar de afundar o país e o impulso de jogá-lo no precipício.
A Argentina já foi uma das nações mais desenvolvidas do mundo e muito à frente dos países da América Latina. Ao longo de décadas e sucessivos fracassos, a Argentina vem caminhando, a passos largos para se igualar aos pobres e desiguais países do continente. Daron Acemoglu e James Robinson, no clássico "Por que as nações fracassam?", comentam que a Argentina "cresceu rapidamente por cinco décadas, até 1920, chegando a se tornar um dos países mais ricos do mundo, mas desde então iniciou um longo declínio". Desde o final do século XIX, os governos da Argentina, ainda dominada pelas oligarquias pecuaristas, aproveitaram o crescimento econômico das exportações de carne, e investiram fortemente na educação básica. O crescimento da economia, incluindo o aumento da receita pública, permitiu a elevação do nível e da qualidade da educação pública que, por outro lado, realimentou a economia com uma força de trabalho qualificada e construiu uma sociedade com baixo nível de desigualdades sociais.
Este ciclo virtuoso teve um novo impulso no primeiro governo de Juan Domingues Perón, que rompeu com a oligarquia, introduziu o trabalhismo e o nacionalismo e promoveu a modernização da economia. O mesmo Perón deu origem ao peronismo, o populismo argentino que até hoje idolatria o grande líder, um movimento sem identidade política e ideológica e que mistura várias tendências de direita e de esquerda (incluindo o movimento guerrilheiro dos Motoneros), oportunistas, corruptos e mafiosos. Curioso como num país tão culto, como a Argentina, o populismo peronista continue dominando a política, numa manifestação quase pueril de culto ao ídolo. Como lembram Acemoglu e Robinson, "os peronistas venciam as eleições graças a uma portentosa máquina política, que lhes angariava a vitória por meio da compra de votos, da patronagem e da corrupção generalizada, incluindo-se a concessão de contratos e cargos no governo em troca de apoio político".
Mais surpreendente ainda que a culta Argentina esteja agora dividida entre o candidato do peronismo, que está levando o país a uma das maiores crises econômicas e sociais, e o histriônico Javier Milei, o anarco-capitalista, como ele se define, que conversa com seu cachorro e toma decisões baseadas no tarô; e que, na sua campanha prometeu desmontar o Banco Central, implodir o MERCOSUL e romper relações com a China, além da absurda liberação do mercado de órgãos humanos e a eliminação de vários ministérios, incluindo os ministérios de educação, da saúde e de desenvolvimento social. Mesmo com propostas tão absurdas, Milei recebeu 30% dos votos dos argentinos no primeiro turno, se credenciando para disputar o segundo turno com o candidato peronista, Sérgio Massa, ministro da Fazenda de um governo desmoralizado pela grave crise econômica e social.
A surpreendente votação de Milei parece refletir a desesperança dos argentinos depois de tantos fracassos dos sucessivos governos, liberais ou populistas, responsáveis pelo processo de decadência da Argentina nas últimas décadas. O futuro presidente vai enfrentar uma situação muito complicada, uma inflação de mais de 140% ao ano, um elevado déficit fiscal e a completa insolvência externa, e com cerca de 40% da população abaixo da linha de pobreza. Se Sérgio Massa for eleito, o que parece razoável considerando sua liderança no primeiro turno, a Argentina escapa do doidivana, mas ele terá muitas dificuldades de enfrentar a crise profunda da economia argentina com a resistência dos aliados peronistas, ainda liderados pela ex-presidente Cristina Kirschner, à implementação de medidas duras e necessárias de ajuste externo e fiscal, sem as quais, será muito difícil sair da crise.
Entretanto, uma eventual vitória de Milei no segundo turno será o empurrão que falta para jogar a Argentina no abismo econômico, no desastre social e no caos político, provocando ainda uma forte turbulência nas relações políticas, diplomáticas e comerciais da América Latina, incluindo o desmantelamento do MERCOSUL.
O povo culto da Argentina parece condenado, nestas eleições, a escolher entre o populismo peronista e a mistificação de um outsider que pretende destruir a política e levar junto a nação, entre a esperança de, ao menos, parar de afundar o país e o impulso de jogá-lo no precipício.
Sérgio C. Buarque, economista