OPINIÃO

Viver juntos

Sem passado onde se apoiar e sem futuro pelo qual se conduzir, estamos condenados a um eterno retorno do igual e do sem sentido.

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 31/10/2023 às 0:00 | Atualizado em 01/11/2023 às 7:28
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É verdade que não podemos mais requerer - e muito menos exigir- das pessoas que façam do espaço público uma parcela importante de suas vidas: elas são muito ocupadas, descentradas, plurais e dispersas: além de quererem ser cidadãos (se é que o querem, e com que sentido!), os indivíduos querem também experimentar muitas outras identidades, e sem prejuízo umas das outras.
Mas, num mundo tão desastrosamente desorientado como o nosso, quer dizer, que não se guia mais pelas amarras normativas do passado, da tradição ou da autoridade (secular ou religiosa), e nem se orienta pelo vislumbre da sociedade justa e igualitária da utopia, numa sociedade assim, retomo, que sentido poderia ter uma educação que fosse obrigada a assentar suas bases numa conservadora e tediosa aderência ao presente? Sem passado onde se apoiar e sem futuro pelo qual se conduzir, estamos condenados a um eterno retorno do igual e do sem sentido. É aqui onde, penso, apoia-se o imenso mal-estar dos educadores e que chamamos, muito imprecisamente, de “crise da educação”, sobretudo, a escolar. Estranha crise, direi, porque mais mergulhamos nela, mais ministramos o mesmo remédio: mais escola, mais escolarização, mais formação, mais investimento...
Minha modesta posição, defendida ao longo dos anos, é a de que a escola moderna, em países como o nosso, não esgotou suas virtualidades. Entendo a escola “moderna” como aquela que solidarizou projeto de subjetivação com projeto de construção “nacional” e, para isso, precisou inventar um “povo”... Ou melhor, criar um corpo político republicano capaz de dar uma resposta à questão agonística da vida civil: a Cidade será governada pela vontade organizada dos homens ou ficará à mercê de forças incomensuráveis e abstratas? Aqui, tais forças não são mais as dos deuses, mas as do mercado, dos tecnocratas, da planetarização ao mesmo tempo fluida e palpável do capital financeiro...
Minha velha aposta “republicana” é, de fato, um combate em duas frentes: de um lado, a simples tentativa de oferecer uma pedra para a barricada que tenta conter o avanço de uma estratégia de desorientação, orquestrada através de uma nova e insidiosa técnica de administração do desejo, tão típica da sociedade hiperindividualista e, do outro, oferecer uma resposta a esse imenso perigo que são os excluídos, porque, assim como não são os democratas convictos que representam um perigo para a democracia, são os que estão fora do social – os excluídos- que representam um perigo para o social. O problema não é que eles tenham sido colocados “para fora”, ou nunca tenham estado “dentro”: o problema é quando esses excluídos percebem que existe uma cartografia social do “interior” e do “exterior” numa sociedade que se diz cada vez mais democrática e supostamente inclusiva. O que era “luta de classes” entre “os de cima” e “os de baixo”, com seu viés político e otimista, virou esgarçamento social entre “os de dentro” e ‘os de fora”, com seu viés amedrontador e desintitucionalizante, com a formação de estados paralelos do crime, enraizados nas periferias das grandes cidades e irradiando-se para articulações internacionais e movimentando somas astronômicas de recursos financeiros, financiando políticos, oferecendo serviços e minando a democracia “de fora”, mas também “de dentro”!
A pergunta -já antiga- interroga-nos sobre nossa capacidade de simplesmente viver juntos! E não se trata apenas do viver no interior da mesma sociedade, com seus mecanismos de fratura cada vez mais insidiosos, intransparentes e nocivos, apesar de todas as políticas sociais, mas também as fraturas produzidas na tradição que formou nosso conceito de Humanidade, enquanto conjunto de predicados e valores que compõem nossa condição humana (o crime de lesa humanidade, não custa lembrar, não é um crime de dimensões “aushwitzianas”, mas um crime contra aquilo que temos de “humano” em cada um de nós). Há inquietantes sinais neste meu presente histórico que parecem apontar, não mais para a derrocada final das utopias de reconciliação e igualdade, mas o fim mesmo daqueles valores que forjaram aquela condição dita “humana” e que envolvia direitos, ética, consciência, projeto, individualidade crítica e livre, e possibilidade de convívio com a alteridade cultural.
Para um professor de História, como eu, que, no início da formação, acreditou numa específica noção de “progresso do espírito humano”, à la Condorcet, viver tempos de um pós-humanismo, ao mesmo tempo, crítico de seus aspectos opressivos e destruidor das esperanças modernas, agora reveladas ilusoriamente otimistas, é reafirmar aquela observação de Milan Kundera, que dizia que decidimos nossas vidas na “era da ignorância”, quando não temos a menor ideia de aonde terminarão as coisas que começamos.

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

 

 

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