OPINIÃO

Aniversário de Drummond

Que poemas Drummond escreveria hoje sobre a guerra? 31/10. Aniversário de Drummond. Notável pensar que ele nasceu e morreu. Quem diria que o poeta foi homem!

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JOÃO HUMBERTO MARTORELLI

Publicado em 02/11/2023 às 0:00 | Atualizado em 02/11/2023 às 9:20
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 Gosto, com tal perplexidade, de pensar prosaicamente em Drummond: a indignação com a expulsão do colégio em Nova Friburgo; chamar o pai de vós; a ele se dirigia em cartas, diz com alguma compunção, com parca naturalidade; o jeito fechado, mas afetuoso, com a família; o almoço no aeroporto, ingerir um filé sangrento que lhe repugna, mas que ingere assim mesmo, em parte porque não gosta de reclamar, típico de sua personalidade quieta, em parte porque passar o filé levaria uma vida; o uísque com sanduíches, ou a inocente farrinha, tomando chope no Largo do Machado; Drummond, o burocrata empregado na ditadura Vargas, o comunista, sempre à esquerda, com total descrença religiosa; arreliado no canto do táxi partilhado com desconhecidos que falavam em dinheiro com sotaque nortista; desviar o rosto do corpo do irmão morto, e ainda assim lembrar que ficou pensando na semelhança com a outra irmã; a preocupação com a preocupação de Dolores, se nada avisa que vai demorar, ela fica intranquila, se avisa, ela fica apreensiva, à espera; a convivência com os amigos, a surpresa com as amantes de Manuel Bandeira; o amor a Julieta e a devastação com a morte dela, imagino o poeta vivendo essa dor, nem deveria ter mencionado isso, porque sou pai, e esconjuro, terá ele esconjurado? Não pôde, arremeteu para viver mais um tempo, se bem que sem querer.
Que poemas Drummond escreveria hoje sobre a guerra? A guerra é russamericana english, mas recebe eflúvios de Paris. Seus versos falariam do hospital em Gaza, ou dos jovens e idosos sequestrados e mortos por ódio? Pedra por pedra reconstruindo Stalingrado, outros homens, em outras casas continuarão a mesma certeza, ele profetizou. Retomaria ele Clara, passeando na beira do lago, enquanto bombas explodem ao redor? Não sabemos. Sabemos que as palavras aí estão, em estado de dicionário, e a poesia sobreviveu. A rosa emerge do asfalto. No meio da guerra, por causa dela, a poesia é mais necessária.
Poeta, meu poeta idolatrado, que tantas personagens de seus versos já vivi e vivo todas os dias, que me consomem e me sublimam, queria ser o pai que não chega e está representado no vestido pendurado na parede, a amante do pai, o homem se barbeando na frente do espelho sem saber que hoje morrerá no desastre de avião, queria ser Fulana e me abraçar com você, e dizermos um ao outro, irmãos que viveram guerras, que queremos, que mais queremos? Queremos viver num mundo sem classe e imposto, de contradições extintas, com a lua sendo nosso esquema de um território mais justo, e nesse mundo instalaríamos os nossos irmãos vingados.
Fim da crônica, você teve mais espaço, pôde dar fins melhores. E deu. Toda a vida.
Salve o seu aniversário!

 João Humberto Martorelli, advogado

 

 

 

 

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