OPINIÃO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos

Basicamente, a Convenção aprovada em 1969 e ratificada pelo Brasil em 1992, assegurou um conjunto de direitos aos encarcerados, que o Brasil teima em não os efetivar, por nítida falta de vontade política

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Adeildo Nunes

Publicado em 02/11/2023 às 0:00 | Atualizado em 02/11/2023 às 9:16
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A Constituição Federal de 1988 - que completou 35 anos de vigência em 5 de outubro passado - elegeu a soberania nacional, o exercício da cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, finalmente, o pluralismo político, como seus princípios fundamentais, cujas regras jurídicas foram introduzidas no limiar da Carta Maior, precisamente em seu artigo 1º. Em seu art. 4º, II, os constituintes decidiram pela prevalência dos direitos humanos como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. O art. 5º, da mesma Carta Magna, elenca uma série de direitos e garantias individuais, extensivos a todos os brasileiros, ditando os casos em que as autoridades públicas estão obrigadas a cumprir ou a fazer cumprir, sob pena de crime de responsabilidade e até de abuso de poder. Como se nota, a política de direitos humanos, presente em todos os países democráticos do mundo, também é parte significativa dos dispositivos que regem a nossa Constituição, aliás, a que mais intensamente regulou a matéria.

Antes de aprovada a Carta Constitucional de 1988, porém, o Brasil e praticamente todas as nações das Américas, precisamente em 22.11.1969, fragmentadas pelas atrocidades humanas praticadas pelo nazifascismo, assinaram a Convenção Americana de Direitos Humanos, em São José da Costa Rica, que veio a ser referendada pelo Decreto Presidencial nº 678, de 06.11.1992, vinculando o Brasil às suas normas, de uma vez por todas, obrigando o País a cumprir todas as disposições descritas na Convenção promulgada, incidindo, em caso de descumprimento, as sanções de cunho internacional.

No corpo do Pacto de São José da Costa Rica, foi criada a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica, composta de sete juízes, nacionais dos Estados-membros da Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candidatos. Basicamente, a Convenção aprovada em 1969 e ratificada pelo Brasil em 1992, assegurou um conjunto de direitos aos encarcerados, que o Brasil teima em não os efetivar, por nítida falta de vontade política.

O direito à vida, à integridade física, à liberdade, o livre acesso à Justiça, indenização pelos danos sofridos, proteção à honra e à família, liberdade de consciência, educação, saúde, assistência jurídica, pensamento, expressão e religião, reunião pacífica, políticos e tratamento não degradante, foram alguns dos direitos consagrados ao preso, que ainda hoje não são disponibilizados aos encarcerados.

Em 2014, algumas entidades não governamentais de Pernambuco ingressaram com uma reclamação junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, denunciando a situação degradante imposta aos presos recolhidos no complexo prisional do Curado, em Recife, composto por três estabelecimentos prisionais. Recebida a denúncia, a Corte designou membros da instituição para a realização de uma inspeção minuciosa nos presídios, concluindo que realmente os seus mais de 6 mil detentos que lá estavam detidos sofriam maus-tratos, ademais as condições físicas das prisões contrariavam o Pacto de São José da Costa Rica.

Em novembro de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) determinou que os presos no Complexo Penitenciário do Curado teriam os dias de prisão computados em dobro. Na decisão, a Corte reconheceu que as condições de aprisionamento no Curado violavam a Lei brasileira e, também, a Convenção Americana de Direitos Humanos e, por isso, não garantiam nem a vida e nem a integridade das pessoas presas, funcionários e visitantes do Complexo Penitenciário.

Em junho de 2022, o ministro Edson Fachin determinou o cumprimento da medida estabelecida pela Corte Interamericana, mandando realizar a contagem do tempo de prisão (cautelar ou definitiva) em dobro, em relação a todos os reclusos que estivessem lá detidos ou tenham sido recolhidos no passado, reconhecendo, taxativamente, um "cenário de risco à vida, à saúde e à integridade das pessoas privadas de liberdade local" Desde então, todos os detentos que forem recolhidos a um dos três presídios do complexo prisional do Curado devem ter computado o tempo de detenção em dobro, uma punição internacional que deveria ser estendida a quase todos os estabelecimentos penitenciários do País.

A celeuma relativa à aplicação do art. 75 do Código Penal, que até 23.01.2020 estabelecia o máximo de cumprimento da pena de prisão em até 30 anos, atualmente equivalente a 40 anos, com a reforma provocada pela Lei nº 13.964/2019, não tem razão de ser. Na verdade, observada a Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal, por analogia, de logo constata-se que o total da contagem do tempo de cumprimento da pena, para fins do cômputo em dobro, deve ser aquele equivalente a totalização da condenação e não do limite de cumprimento da pena privativa de liberdade, como muitos imaginam.

Adeildo Nunes, juiz de Direito Aposentado, Professor, Doutor e Mestre em Direito, Advogado Criminalista, Membro da Academia Brasileira de Ciências Criminais - ABCCRIM

 

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