Superar a herança bolsonarista e reconstruir a segurança pública
A origem da crise da segurança pública não pode ser compreendida sem destacar o peso do legado descivilizatório do governo Bolsonaro nesta área
As crises da segurança pública são crônicas na sociedade brasileira. Os eventos violentos recentes que colocaram os estados do Rio de Janeiro e da Bahia sob os holofotes nacionais não são novidades, considerando a trajetória do recrudescimento da criminalidade que assola o país nas últimas décadas. O diagnóstico da letalidade policial fora do controle ou das diferentes e crescentes formas de domínio territorial por facções e milícias já são lugares comuns para quem acompanha o cenário da insegurança pública persistente neste país que se pretende cordial. Some-se a isso o fato de que as políticas públicas do setor têm sido caracterizadas pela tibieza, descontinuidade e tímidos acúmulos incrementais, tanto no âmbito federal, quanto nos níveis estadual e municipal.
Este é o contexto herdado pelo governo Lula, que tem sido instado a retomar o protagonismo na coordenação de uma estratégia nacional de redução da violência e do crime. Não é casual, portanto, que o Ministro da Justiça e da Segurança Pública Flavio Dino tenha se destacado tanto no primeiro ano do governo Lula, especialmente pela resposta imediata aos sucessivos episódios de exacerbação da violência e da insegurança
em diversas regiões do País.
Mas a origem da crise da segurança pública não pode ser compreendida sem destacar o peso do legado descivilizatório do governo Bolsonaro nesta área. Ao assumir o cargo em 2019, havia condições institucionais bastante favoráveis para a implementação de avanços na política nacional de segurança pública.
Havia um Ministério específico para o setor, a lei federal do SUSP que disciplinava a articulação de esforços entre os entes federados e uma fonte estável de recursos para financiar a política pública correlata. Ademais, estava em curso uma trajetória descendente das taxas de homicídios, provavelmente relacionada às tréguas e acordos provisórios e instáveis de grupos criminosos em vários estados importantes da federação e à implementação, descontínua, de programa de redução de mortes violentas em alguns estados, com ênfase
na reorganização da atuação policial e foco em investigação e gestão.
Contudo, o traço central do governo Bolsonaro foi a incapacidade de formulação e implementação de uma estratégia nacional de controle da criminalidade, seja por déficit cognitivo e organizacional, seja por pura falta de vontade política. Evidenciou-se nítido retrocesso na atuação da União no âmbito da segurança pública, dado que todos os governos que o antecederam, (FHC, Lula I e II, Dilma I e II e) Temer, apresentaram algum
tipo de atuação mais consistente nessa área.
A flexibilização do Estatuto do Desarmamento, iniciativa central da gestão Bolsonaro na segurança pública, contrariou todas as evidências científicas disponíveis e gerou efeitos perversos cumulativos, desde sua implementação. As facilidades geradas para a aquisição de armas e munições por parte dos CACs produziu o efeito previsível e indesejável de favorecer a construção de arsenais privados por organizações criminosas
as mais diversas.
Não bastasse isso, no seu governo a letalidade policial atingiu os maiores patamares da história recente do País. Entre 2019 e 2022 a média anual foi de 6.300 mortes decorrentes de intervenções policiais em todo o País. No governo Temer essa média ficou no patamar de 5.200 mortes e no segundo governo Dilma, a média foi de 2.900 mortes. Ademais, o discurso da mais alta autoridade da república, legitimou, inúmeras vezes, o uso da violência como conduta válida e desejável para enfrentar a criminalidade, favorecendo, no plano simbólico e cultural, o agravamento do fenômeno.
Não deixa de ser irônico concluir que a gestão bolsonarista, que chegou ao poder prometendo “resolver” a complexa questão da segurança com uma retórica obsessiva de lei e ordem, tenha contribuído tanto, de forma direta e indireta para um agravamento sem precedentes da situação do crime e da violência no país. É sobre esta terra arrasada que os setores democráticos e progressistas, muitos dos quais integrantes do atual governo, devem concentrar imediatamente seus esforços. A construção e a implementação de um
plano nacional de redução da criminalidade violenta devem estar no centro da agenda de prioridades do País.
Combinar o imediato e o estratégico, de forma eficiente e com presença da sociedade civil, coordenar, articular e fomentar as ações de governos estaduais e municipais e das polícias e convocar à participação o Poder Judiciário, o Ministério Público e o Poder legislativo, em todos os níveis, é o mínimo que se espera para
que a barbárie bolsonarista seja superada.
Luis Flavio Sapori, Cientista Social, Professor da PUC-MG, e
José Luiz Ratton, Cientista Social, Professor da UFPE)