Os soldados dormem nas trincheiras?
Apenas a história transporta a chave capaz de converter o flagelo da guerra numa relíquia. Apenas a história incorpora a mensagem perene de um passado de horror ou desumanidade. Tudo isso para que não seja reproduzido ou copiado,
O sonho era peregrino. Numa sala havia uma mesa com uma ruma de livros. Lia-se num exemplar, encaixado numa pilha, o nome de uma falecida amiga: Tilda Amorim. E o livro, após a minha indagação, responde: Meu nome não é Tilda, é San Tiago Dantas.
O eternal Chanceler brasileiro, autor do estudo "D. Quixote, um apólogo da Alma Ocidental", foi um dos cérebros mais privilegiados do Itamarati. O opúsculo revela a repulsa pela canhestra concepção bipolar do mundo e a obstinada recusa da veia mais ignava dos belicistas. Retrocedo para lembrar o sonho em pormenores. Busco a minha amiga em outras obras, mas o livro começa a soluçar.
Desisto, enfim, da minha busca. Tilda deveria estar sob os escombros recobertos pela poeira deixada pelos bombardeios. Lembro o "canto de mim mesmo", da poesia de White Whitman onde o escritor celebra todas as pessoas, engrandecendo a experiência humana e deixando de forma clandestina a sua aniquiladora capacidade para a destruição. E Fernando Pessoa, de forma intrusa, pede licença para versejar: "Deixem-no dormir. Sono é ensaio para a morte que um dia há de vir". Será que poeta se refere aos soldados israelenses? Será que os soldados são capazes de dormir quando estão nas trincheiras? Creio que eles fiquem insones a chorar as suas faltas. Talvez fiquem silenciosos no espaço apenas suficiente para espichar-se e fumar um naco de cigarro, se houver. Sabem que a vida é uma sombra andarilha impossível de apresar. Embora tenham sido treinados para se converterem em máquinas de fabricação de cadáveres, ainda resta um estilhaço de humanidade em cada um deles. Por isso refletem sobre o poema de Berthold Brech: "O homem, meu general, é muito útil. Sabe voar e sabe matar tem apenas um defeito: sabe pensar". Se pensam, então por que matam? E logo me acossa a lembrança da história do sapo e do escorpião: "é da nossa natureza".
Mesmo aqueles que utilizam racionalizações filosóficas e políticas acabam sendo atraídos pela natureza humana na tentativa de justificar as formas mais torpes e sanguinárias de cobiça. Erasmo de Roterdã - o Príncipe cristão" - e o mais notável humanista do século 16, citado por Caleb Carr na "Assustadora História do Terrorismo" - pede licença para afirmar que "a guerra é algo tão monstruoso que condiz com as feras e não com os homens, tão insana que os poetas até imaginam que é deflagrada pelas Fúrias, tão mortal que se espalha como uma praga pelo mundo, tão injusta que é mais bem conduzida pelos piores bandidos, tão ímpia que é totalmente estranha ao Cristo". Tais asserções são mais bem compreendidas no instante em que uma mãe e avó judia começa a narrar: meu filho único - rabino em prontidão - e quatro netos moram em Israel. O neto mais velho, com 27 anos, foi o primeiro a ser convocado. Foi necessário que as autoridades "visitassem" a sua casa para que ele aceitasse, aparentemente, a ideia de defesa da Pátria. Foi dirigir um caminhão na faixa de Gaza. Cumpriu o encargo apenas uma vez. Deixou o transporte na divisa com Israel e correu para a mulher e os filhos. Estava desequilibrado ou sem autodomínio. No dia subsequente foi preso por insurgência. Em poucas palavras, havia revelado sua aparente banda covarde. Os três irmãos mais novos - um deles com 18 anos - estavam alojados em tanques de guerra na investida terrestre pelo Tzahal. Doravante, o soldado que fugiu precisará explicar o significado do instinto de eros (preservação da vida ou desejo de sobrevivência) que prevalece sobre o tânatos (pulsão de morte). Quem sabe se o heróismo não á mais uma utopia criada pelo homem? Afinal, as guerras são povoadas de mentiras. As verdades são apenas estilhaços de espelhos: cada indivíduo carrega o seu. Recordo a figura do grande historiador Tucídides e a "Guerra do Peloponeso"- exercício de erudição humanística, escrita no século V a.C.. Não é o confronto entre Ocidente e Oriente, não é a contenda entre duas bandeiras: Palestina e Israel. Tudo aconteceu entre Atenas, com sua democracia e cultura, e Esparta com a sua oligarquia e militarismo. Esparta vence Atenas, mas não teve força e energia para manter seu domínio sobre a Grécia Antiga. Foi por isso que Esparta acabou vencida pelos macedônios.
Leio o artigo escrito por Pilar Rahola, enviado por Eliane Cruxên - "um vestido novo para um ódio antigo", onde a articulista afirma que apenas contra Israel os juristas ousam emitir opiniões. E tudo "porque Israel está sob a lupa midiática permanente e sua imagem continua a ser distorcida para contaminar os cérebros do mundo" Mesmo as pessoas cults teimam em acreditar que os judeus têm seis braços. Inexiste debate sobre o conflito ou lúcidas permutas de ideias; apenas troca de rótulos e adesão a slogans. Afinal, somos herdeiros de um jornalismo "fast food" carregado de preconceitos, propaganda malsã e simplismo. Prefiro, antes de me afogar nas águas da intolerância e do preconceito, flutuar no rio caudaloso da história. Apenas a história transporta a chave capaz de converter o flagelo da guerra numa relíquia. Apenas a história incorpora a mensagem perene de um passado de horror ou desumanidade. Tudo isso para que não seja reproduzido ou copiado,
Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em ciências jurídico-políticas.