Tiro no pé
A combustão do álcool emite CO2, como qualquer combustão. Mas o carbono emitido volta, absorvido pela cana durante o crescimento da planta
Incentivo - recurso importante, não só em economia - é instrumento que oferece opções ao público-alvo, buscando-se direcionamento para resultados que tragam, ou reforcem, determinado benefício líquido, segundo a ótica dos concedentes. Particularmente em políticas públicas, incentivos geralmente envolvem renúncia fiscal: redução ou isenção de impostos ou taxas, ou renúncia de ganhos financeiros, na forma de redução de juros em operações de crédito. Quando deixam prejuízos líquidos, podem ficar sujeitos ao chiste do "tiro no pé" - uma pedagógica peça da sabedoria popular.
Isso estabelecido, vamos a recente episódio de incentivo a carros elétricos, largamente incentivados em países de alta renda. Tal política objetiva reduzir, em cidades que mais concentram eleitores, parte da poluição e resultados da agressão à Terra - gerados pelo consumo de combustíveis fósseis. Trata-se, aqui, da poluição constituída por fragmentos de pneus que o veículo passa à atmosfera. A dimensão desses fragmentos tem escala de nanos a décimos de milímetros. Tão menor a dimensão, maior o dano, dado que eventual absorção desses fragmentos, pelos terráqueos, se daria via aspiração, alcançando pulmões e passando à corrente sanguínea. Tal poluição não diminui com os carros elétricos; bem ao contrário, aumenta. Com indispensáveis baterias (em geral, de lítio), veículos elétricos se tornam significativamente mais pesados do que os ainda dominantes veículos movidos a motores de combustão interna.
Quanto à remoção da poluição causada pelo uso de combustíveis fósseis, há uma relocalização. Os países desenvolvidos que demonstram interesse na substituição de carros convencionais por carros elétricos têm uma matriz de produção de energia elétrica majoritariamente composta por combustíveis fósseis. Além do mais, um carro elétrico, quando na concessionária para a primeira venda, já terá emitido tanto CO2 quanto 40 mil quilômetros rodados por equivalente carro a gasolina. Faça-se, agora, com um carro a álcool, similar comparação. A produção deste se iguala à dos carros a gasolina; mas, quanto ao uso, é zero carbono, na linguagem usada para se caracterizar o que a rigor seria emissão de CO2, em ordem de grandeza inferior à do carro a gasolina.
Emissão zero é o que, na linguagem usual, se pode dizer de um carro a álcool. A combustão do álcool emite CO2, como qualquer combustão. Mas o carbono emitido volta, absorvido pela cana durante o crescimento da planta. Se a cana for queimada antes da colheita, o CO2 gerado será reabsorvido, assim como ocorre com o bagaço, se usado para produzir calor. Parte dos países tropicais pode usar, de forma eficiente, a energia solar para produção de álcool, sendo este utilizado como combustível em um carro menos emissor. Por que, então, o esforço gigantesco para hastear o carro elétrico como padrão de desenvolvimento?
Há subsídios para instalação, produção, importação, aquisição do veículo (a exemplo de dispensa do equivalente ao IPVA brasileiro), e algo como gratuidade para estacionamento etc. A nação líder no uso de carros elétricos é a Noruega. Está na internet a manchete "Carros elétricos batem novo recorde com 86% de participação na Noruega" (vendas em 2022, possivelmente). Não se trata, como parece, de proporção do estoque de veículos. Note-se que os subsídios aos supostamente limpos veículos vincula-se à exploração de petróleo no Mar do Norte, tornando a pauta de exportação da Noruega (quase cinco milhões de habitantes) praticamente da mesma ordem da brasileira (210 milhões de habitantes). Os recursos para tais incentivos também vêm de exploração mineral na Amazônia, por empresas de capital norueguês, com processos poluentes, que renderam centenas de multas do Ministério Público do Amazonas, nunca pagas (viciosa recorrência judicial). O êxito no processo de eletrificação da frota de automóveis e a dotação ao Fundo Amazônico, tratados como certa compensação à Amazônia, são amplamente divulgados. A poluição advinda da mineração gera retardamento mental e outras questões de saúde nos nativos, assim como traz grande contribuição ao Aquecimento Global. Aspectos "esquecidos". Contribuição positiva para a Qualidade de vida em Oslo, o contrário para a Amazônia. Aumenta-se o QI médio em Oslo, diminui-se o QI médio na Amazônia. Sutil processo de transferência de QI e de Qualidade de vida.
Fontes de combustíveis fósseis, minas de material radioativo e minas de metais raros necessários a baterias dos carros elétricos - são espaços pontualmente localizados e podem estar sob controle do clube dos países desenvolvidos. A produção de álcool a partir da energia solar é geograficamente ampla e distribuída entre diversas regiões de vários países, sendo de difícil controle por parte deste clube. É compreensível que tal clube não adote uma solução - o álcool motor - que não possa ser facilmente controlada. A não adoção de álcool combustível se dá, então, por entendimento de vantagem estratégica dos países desenvolvidos, à custa da dispensa de melhor solução para o conjunto de seres humanos - a via do álcool combustível. Imagine-se a enorme soma de subsídios que fluem para o desenvolvimento da indústria de carros elétricos sendo alternativamente aplicada ao desenvolvimento de soluções de Adaptação ao Aquecimento Global, para benefício de toda a humanidade. Quão melhor seria para todos.
Entende-se que os países desenvolvidos, em desvantagem na produção de álcool motor, optem pela economicamente irracional torra de recursos para desenvolver uma solução para a qual já existe superior, o álcool motor. Mas países equatoriais e tropicais - com vantagem absoluta e relativa na produção de álcool motor - gastarem escassos recursos para financiar a indústria de carros elétricos... Nada a ver com racionalidade. Pode ser imitação, ação que humanos compartilham com outros seres aproximados do ponto de vista evolutivo. Proverbial tiro no pé. Se há no Brasil incurável ânsia para subsidiar, que seja a produção de carros exclusivamente a álcool. Não a carros elétricos.
Adriano Dias, engenheiro mecânico, doutor em Economia, professor titular aposentado da UFPE.
Tarcisio Patricio tem doutorado em Economia, professor da UFPE, aposentado.