OPINIÃO

A Terra (com)Prometida

Orando para que o espírito moral e intelectual daquelas mulheres e homens judeus, que souberam - todos eles- o que era o exílio, o extermínio, a ocupação, a fome, a morte, ilumine uma PAZ duradoura naquela sofrida região, que já foi um dia a Terra Prometida e onde, hoje, é uma ideia de civilização que se encontra (com)Prometida!

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 07/11/2023 às 0:00 | Atualizado em 07/11/2023 às 13:24
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Émile Cioran dizia que não aprendemos nada com as guerras: "As balas entram por um ouvido e saem pelo outro!". Mas eu acho que aprendemos sim: aprendemos a fazê-las, aprendemos a repetir com o "inimigo" atual a mesma coisa que fizeram conosco, quando fomos a vítima da vez.

Sou de origem judaica (cristão-novo emigrado da França para Portugal e Cabo Verde) e foi, sobretudo, com os intelectuais judeus (Marx, Freud, Adorno, Lévi, Benjamin, Arendt...) que aprendi a exercer um tipo de reflexão capaz de interrogar não apenas o sentido de nossa presença num Mundo Comum, ou que tipo de herança cultural estamos legando e o que fazemos desse "passado", e se seremos ainda capazes de assegurar a permanência de um "rosto humano" em nossas relações.

Com a cultura intelectual judaica eu aprendi que o Anjo da História vê, atrás de si, um monte de ruínas que chamamos de "progresso" (Benjamin); que era na História, e não na Geografia, que realizaríamos a utopia da sociedade reconciliada (Marx); que me habitam forças internas cujas motivações não são conscientes, mas que posso torná-las (Freud); que a cultura do "Esclarecimento" também pode se transformar em formas insólitas e intransparentes de dominação (Adorno); que a Ética que temos de propor é prospectiva: para os que ainda virão e que herdarão um mundo sobre o qual temos "responsabilidade" (H. Jonas); que a Educação é aquele ponto em que decidimos se amamos o Mundo suficientemente para permitir sua continuidade (Arendt); que a barbárie pode falar a linguagem do Humanismo (Bernard Henri Lévi); que a Antropologia nos permite enxergar nossa própria cultura através de olhos estranhos (Lévi-Strauss)... Mas aprendi também com um não-judeu que "numa guerra não cometa nenhum ato que possa prejudicar uma paz futura" (Kant).

Mas, minha origem não me condena nem autoriza a aceitar políticas de estado quando elas se voltam exatamente contra aquilo que aprendi com esses intelectuais. Sim, é verdade que desde a 3° Diáspora (General Tito. 70 d.C.), os povos de Samaria e da Judeia (que já viviam em conflito!) foram dispersos ao ponto de não disporem mais de uma "pátria", mas apenas de uma "nação" espiritual oferecida pela religião comum, onde já havia muitos modos de interpretá-la (Fariseus, Cananeus, Saduceus, Zelotes, Essênios... Os Fariseus e os Zelotes, por exemplo - Barrabás era Zelota- pregavam a luta armada e a violência contra a dominação romana da Judeia!). O problema - gravíssimo!- do antissemitismo, sobretudo na Europa tanto Ocidental quanto Oriental, fora em parte provocado pela própria dispersão e perseguição constante, seja pela acusação de terem assassinado O Enviado, seja pela não fixação imobiliária permanente e trabalhando com controle de empréstimos bancários a juros, monopólio do sal (necessário à conservação dos alimentos), donos de capital financeiro (São Tomás de Aquino condenava com veemência os juros -usura- que considerava um "roubo do tempo: e o tempo pertence a Deus!"). As leis alemãs (século XIX) de assimilação, observou Gerson Scholem, nunca funcionaram efetivamente, mas Arendt se considerava antes de tudo alemã e só "descobriu" que era "judia" no momento das Leis anti-judaicas nazistas (lembro que Hitler - Mein Kampf- considerava a existência de "povos agregadores e desagregadores", os judeus entre os últimos, e que a perseguição não se deu por sua crença religiosa, mas por sua ascendência étnica e cosmopolitismo cultural que contrariava o nacionalismo romântico nazista).

O problema, naquele terrível século XX, foi a tragédia que se abateu sobre o judaísmo europeu (1933-45), o chamado "Holocausto", aquilo "que nunca deveria ter acontecido" (Scholem), mas que produziu, por outro lado, o que Todorov chamou de "excesso de memória" (Les abus de la mémoire): "Ter sido vítima vos dá o direito de se queixar, de protestar e de reclamar, exceto de romper todo laço com os outros: esses são obrigados a responder às suas demandas. Mas é sempre mais vantajoso ficar no papel de vítima do que receber uma reparação pela ofensa sofrida: no lugar de uma satisfação pontual, guarda-se um privilégio permanente, a atenção e o reconhecimento dos outros lhes está assegurado. Maiores foram as ofensas no passado, maiores serão os direitos no presente!". É de um terrível cinismo o Primeiro-ministro israelense chamar o Hamas de "Nazista"!

Nada disso, claro, justifica os atos ditos "terroristas" cometidos contra Israel pelo Hamas, mas foi Israel quem enfraqueceu o Fatah e permitiu a ascendência do Hamas na Faixa de Gaza. Sugiro que reflitamos um pouco sobre aquele "aprendizado com as guerras" (que Cioran negava) a que me referi aqui em cima: a anexação de territórios por Israel (a Anschlüss nazista); a concentração de populações em espaços privados de liberdade (o Gueto de Varsóvia); massacre de populações civis (a Endlössung nazista - Solução Final); a colonização de espaços tomados à força (o caso da Boêmia e dos Sudetos pelos nazistas); serviço de inteligência - Mossad- usando a vigilância, a denúncia e a tortura como método (Gestapo nazista); autorizações especiais para circulação no território de Israel para os palestinos (leis anti-judaicas de 1940)...

O termo TERRORISMO, se não me engano, aparece pela primeira vez na literatura contemporânea em E. Burke ("Cartas sobre uma paz regicida"), no célebre ensaio sobre a Revolução Francesa, em sua crítica ao radicalismo jacobino e seu "terror revolucionário"; mais tarde foi usado na Espanha contra as forças de ocupação napoleônicas ("a guerra irregular"): praticado ora contra o estado autoritário (no Brasil inclusive!), ora contra o ocupante (é interessante que as ações da Resistência Francesa jamais tenham sido qualificadas de "terroristas", a não ser pelos próprios... Nazistas!): o ato terrorista (vejam Curzio Malaparte na "Técnica do Golpe de Estado") produz a destruição inesperada, realizada por agentes ocultos e dispersos na multidão (típico da sociedade urbanas); alta mobilidade dos agentes; grupos pequenos, treinados e altamente ideologizados e convencidos do valor da "causa"; disposição ao sacrifício (do latim "fazer sagrado"); não se auto-definem como "terroristas" mas como forças de resistência (e o "direito de se defender": o mesmo argumento que Israel usa!): os CIVIS como alvo, o MEDO como técnica, a SURPRESA e a DESCONFIAÇA como estratégia, a DESESTABILIZAÇÃO como meta. Aquilo que Israel pratica contra os povos da antiga Palestina desde praticamente a fundação do seu Estado, gostemos ou não!

Concluo, orando para que o espírito moral e intelectual daquelas mulheres e homens judeus, que souberam - todos eles- o que era o exílio, o extermínio, a ocupação, a fome, a morte, ilumine uma PAZ duradoura naquela sofrida região, que já foi um dia a Terra Prometida e onde, hoje, é uma ideia de civilização que se encontra (com)Prometida!

Flávio Brayner é professor

 

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