Opinião

Já vai tarde

O abandono de causa é essencialmente comportamento que projeta reflexos deontológicos, logo, de competência dos Tribunais de Ética da OAB, e não um agir suscetível de punição sumária por parte do Judiciário

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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 15/11/2023 às 22:14
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O Código de Processo Penal, relíquia de 1941, do tempo da Segunda Grande Guerra, estipula no seu artigo 265 (cabeça) – ainda que com redação dada em 2008 – que “o defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 a 100 salários-mínimos”.

Divisa-se aí uma previsão que, como comprovam os alfarrábios históricos, já nasceu problemática. O fato é que, ao analisar em agosto de 2020 a ADI 4.398, o STF concluiu pela constitucionalidade dessa multa, nos termos do voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, para quem a ausência do advogado impõe óbvia prejudicialidade à administração da justiça, à duração razoável do processo e ao direito de defesa do réu.

ENTENDIMENTO DA QUINTA TURMA DO STJ

Já a 5ª Turma do STJ compreendeu em abril do corrente ano, ao enfrentar o RMS 63.152, da relatoria do Ministro Messod Azulay, que abandonar o plenário do Tribunal do Júri como tática de defesa por discordar de ato praticado pela acusação possibilita a aplicação da multa em realce.

Na convicção daquele julgado, “abandonar um processo em curso, por mero inconformismo com o decidido em plenário, é tática processual que afronta a Justiça, notadamente quando se trata de uma sessão do Tribunal do Júri, cuja preparação é consideravelmente dispendiosa, inclusive em termos financeiros para o Estado”, logo, “não há que se falar em motivo imperioso quando o advogado, ao invés de buscar a reforma da decisão/anulação do julgamento, pela via processual adequada, simplesmente abandona o plenário, obstando a continuidade da sessão”.

PROJETO DE LEI APROVADO RECENTEMENTE PELO SENADO

O abandono de causa é essencialmente comportamento que projeta reflexos deontológicos, logo, de competência dos Tribunais de Ética da OAB, e não um agir suscetível de punição sumária por parte do Judiciário, o que levou ao Projeto de Lei 4.727/2020, aprovado recentemente pelo Senado.

A multa hoje expurgada para o esquecimento é uma condenação que traz a reboque presunção relativa de culpa do advogado, negando a garantia constitucional do devido processo e abrindo espaço para arbitrariedades. A expressão “abandonar o processo”, com o condão de largá-lo, de deixá-lo em definitivo, sendo sinônimo de desistência indevida, com efeitos permanentes, implica castigar não a ausência a um ato processual específico, mas à universalidade do processo.

ATUAÇÃO DA OAB PERNAMBUCO NA LINHA DE RACIOCÍNIO

Firme nessa lúcida e bem amarrada linha de raciocínio, a OAB de Pernambuco vem obtendo pronunciamentos favoráveis no TRF da 5ª Região, a exemplo do ocorrido em janeiro desse ano, perante a 3ª Turma, sob a relatoria do Desembargador Rogério Fialho. Na ocasião, foi anulada a malfadada multa em tela, refutando-se a presunção de culpa e prestigiando-se a de inocência, e, ao lado dela, a essência do que são as prerrogativas advocatícias.

De toda essa explicação desborda uma certeza: o abandonar em tela não foi descriminalizado, nem se tornou conduta atípica. O que se fez foi expurgar da lei, por outra lei, a possibilidade de imposição sumária de pena de multa a esse título, à míngua do contraditório e da ampla defesa, usurpando-se a atuação do órgão de classe da advocacia. Cada um no seu quadrado e ninguém se estranhando, já diz a sabedoria popular, é o que, agora falando-se a sério, preserva o espírito constitucional.

QUAL O LÍCITO A SER MULTADO?

É absurdo pretender – e olhe o leitor que não faltou quem pretendesse – vincular a aplicação da multa ao propósito de imprimir maior celeridade aos feitos. Suponham-se o não comparecimento do causídico a uma audiência, que se resolve com a nomeação de defensor substituto para o ato, ou o adiamento,
em caso de prévia justificativa, não comprometendo a efetividade do processo.

Qual o ilícito a ser multado? A eventual desídia do profissional de defesa, tomando-se como paradigma a natureza eminentemente disciplinar da falta porventura cometida, deve ser apurada pela OAB, e não subsidiária ou concorrentemente pela toga.

DE PARABENS A OAB POR MAIS ESSA CONQUISTA

De parabéns a OAB, na pessoa do seu bastonário, Dr. Beto Simonetti, por mais essa maiúscula conquista, justa acima de qualquer coisa, eis que, longe de favorecimento, regalia ou camaradagem para com a classe dos advogados, devolve à cidadania, senhora e razão de tudo no Estado de Direito, o troféu do due process of law. Final feliz.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

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