OPINIÃO

Destinos trágicos

Acabei de ler dois livros quase simultaneamente, que contam as histórias de dois homens (ambos vão bem além de uma história pessoal) e do destino que lhes estava reservado: os livros são "Sociabilidades letradas no Recife", de Dimas Veras, e "O Senhor da Barca", de Lula Arraes.

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 21/11/2023 às 0:00 | Atualizado em 21/11/2023 às 7:47
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Édipo - aquele mesmo! - poderia ter ido pra qualquer lugar (Olinda, Porto de Galinhas...) mas foi exatamente para onde ele nunca deveria ter ido: Tebas. E, ainda por cima, salvou a cidade da peste infligida pela Esfinge (é o que Aristóteles chamou de DESTINO TRÁGICO). O resto da história nós conhecemos: ele descobriu que o assassino que ele procurava era ele mesmo (bem que Tirésias tinha avisado!). Resultado: a expulsão da cidade, a perda da cidadania, a cegueira, o exílio.

Acabei de ler dois livros quase simultaneamente, que contam as histórias de dois homens (ambos vão bem além de uma história pessoal) e do destino que lhes estava reservado: os livros são "Sociabilidades letradas no Recife", de Dimas Veras, e "O Senhor do Barco", de Lula Arraes. Os homens dessas duas histórias são João Alfredo da Costa Lima (reitor da antiga Universidade do Recife entre 1959 e 64), e o pai de Lula, o ex-Prefeito e ex-Governador Miguel Arraes. Como naquele "destino trágico" edipiano, eles poderiam ter ido para qualquer lugar, mas vieram para o Recife onde - como definiu o próprio Aristóteles- "por terem praticado uma boa ação, caem numa situação de desgraça" (Poética): o primeiro veio de Surubim, o segundo do Crato! E vieram ambos para um lugar onde uma Esfinge metafórica os esperava com uma pergunta: - "QUAL A ENTIDADE, QUE SAINDO DA OPRESSÃO, PODE VIR A CONDUZIR O PROJETO NACIONAL?". Ambos deram a mesma resposta, embora usando recursos diferentes, e entraram na Cidade, onde viveriam, ao fim de inúmeras "peripécias", "diagnorisis" e "empatias", seus destinos trágicos.

O livro do professor Dimas Veras (excelente!) conta não apenas a história dos conflitos internos à Universidade do Recife, e o doloroso parto de sua "modernização institucional", com a definição de novos valores, meios e metas, voltados para a problematização da realidade nacional (em que o Serviço de Extensão Cultural, sob a responsabilidade de Paulo Freire, e a Revista Estudos Universitários, aos cuidados de Luiz Costa Lima, teriam papel decisivo). Mas o livro conta também, e de forma detalhada, a fogueira cultural e política que incendiava Recife naqueles anos. O que aqueles dois homens fizeram que lhes valeu a pena da exoneração (João Alfredo) e do exílio (Arraes), e que se encontraram naquela cidade (que não existe mais!) onde o ESPÍRITO ABSOLUTO de Hegel resolveu fazer uma escala?

Serviço de Extensão Cultural, Estudos Universitários, Movimento de Cultura Popular, Ligas Camponesas, Rádio Universidade (hoje Paulo Freire), Acordo do Campo, Frente do Recife, O Gráfico Amador, O Teatro de Estudantes de Pernambuco, O Teatro Popular do Nordeste, as Escolas Radiofônicas, as Brigadas de Alfabetização, as Praças de Cultura, o Novo Ciclo do Cinema, a Galeria de Arte do Recife..., um homem lutando contra uma Universidade oligárquica e bacharelesca e tentando integrá-la ao projeto nacional autônomo e soberano, o outro homem lutando para que superássemos as relações coloniais e para que a cultura chegasse a todo o povo. Ambos, na verdade, lutando por um novo conceito de POVO, em que consciência política a agenciamento social se harmonizassem num projeto de Nação.

Aqueles dois homens experimentaram uma espécie de "destino trágico": Gilberto Freyre e Maria do Carmo Tavares de Miranda não se cansaram de pedir as cabeças de Paulo Freire e João Alfredo, que foram banidos da Universidade logo após 64. Arraes, depois da prisão em Fernando de Noronha, foi para a Argélia e o livro de Lula é, ao mesmo tempo, uma homenagem ao seu amado pai, mas também um relato do que o exílio pode fazer com um homem: fortalecê-lo (porque vê o que sua cultura não permitia) e, enquanto sonha com uma incerta volta ("não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá!"), se pergunta sobre o que vai reencontrar, quem reencontrará, como serei visto, como reverei meu país, de que tempo ainda disponho, o que eles lembram de mim? Fico também me perguntando o que teria pensado e sentido João Alfredo, entre sua exoneração e sua morte em 1971, ao ver a Universidade "moderna" que ele queria criar degradar-se em meio às trevas do regime militar?

Ter lido esses dois livros ao mesmo tempo foi como ter tido a oportunidade de fazer com que aqueles dois homens, Arraes e João Alfredo, se encontrassem num rápido retorno à vida, no breve tempo de uma leitura, para, logo em seguida, ganharem um lugar no interior de minha biblioteca. Na História desse doloroso país, eles já estavam. E permanecerão, enquanto ainda formos capazes de "esperançar", como diria Paulo Freire, amigo de ambos.

Flávio Brayner,  professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRP

 

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