'...tinha um rio, mas água por ele esqueceu de passar...'
"O que fizemos com a natureza ameaça nossa existência, só falta nos destruirmos antes de sermos expulsos pelo próprio planeta"
Esta maravilha de verso de 'Reunião de tristeza' (Sivuca, finais dos anos 1970), que encima a prosa de hoje, evocava a tragédia vivida por aqueles que dependem diretamente da agricultura do Semi-Árido brasileiro. Beleza envolvente, que leva a 'viagens' - sem LSD, canabis ou outros "estimulantes". No contexto de hoje, pode também levar ao livre-pensar, ou ao livre-delirar e ao deixar-se mergulhar em melancolia. Sim, aperreios em certos momentos do quotidiano das pessoas costumam se imiscuir na sensação de desconforto mais amplo.
Na pegada do clima, o fenômeno se tornou mais dramático nos últimos 40 anos e o El Niño de 2024 ameaça turbinar a aposta, particularmente no Nordeste, dizem especialistas da área. Nordeste em compasso de desertificação.
Em escala planetária, o aquecimento global traz, mais cedo que o previsto, eventos extremos simultâneos (de fogo, água e desertificação) em quintais vários do Planeta. Netos e bisnetos verão o quê? Insumos para nossos pesadelos. Uma das fontes do atual mal-estar da civilização. Não é pouco e temos mais, além da perpetuação de situações de pobreza e fome. Guerras sangrentas - ódio insano - temperadas por interesses econômicos e geopolíticos de poderosos. A indústria armamentista se farta. E há mais material para alimentar nosso mal-estar.
Utopias não nos faltaram. A mais marcante e ambiciosa - a criação do 'novo homem', no socialismo e, depois comunismo (com eliminação da propriedade privada) - já trazia, na mirabolante proposta de "renovação" do Ser, o germe da ditadura. A história mostra a tragédia de tal pretensão, que gerou tiranias diferenciadas pelas particularidades de cada Nação em que se materializou. O Estado como provedor de sua libertação (do diabo do capitalismo) e de sua felicidade, mesmo que você não a queira - "você será feliz!" - "exceto inimigos e traidores, que deverão morrer". Estava na cara que não poderia dar certo, mas foi tentado em diversas nações.
O que passamos a conhecer por relatos históricos diversos - é ampla a bibliografia - teve grande ganho de conhecimento via a obra de Svetlana Aleksievitch, O FIM DO HOMEM SOVIÉTICO (2012). Sobre a utopia que veio a ser tragédia e distopia russa: a União Soviética (URSS). Em modo inovador de fazer literatura, Svetlana pôs o 'Homo sovieticus' para falar da vida 'socialista'. A tragédia vista por dentro, por quem a viveu. De quebra, ela nos traz uma das anedotas que pululavam na cena russa dos anos 1990: "Comunista era aquele que lia Marx, o anticomunista era aquele que o compreendia". Utopias não vão além de sonhos e, quando ensaiadas, convertem-se em pesadelos.
Tudo isso já seria muito para provocar incerteza e melancolia. Mas, parece que ainda não caiu completamente a ficha do que o novo padrão tecnológico da microeletrônica (desde 1980-90) representa. Como fantástico progresso nas mais diversas áreas da tecnologia, da economia, do conhecimento, da vida humana; e também como danoso entulho no quotidiano do cidadão, em todo o mundo. Tivemos, com a Internet, muito mais do que o lixo da "legião de imbecis" antecipada por Umberto Eco. A WWW dá espaço ao mal que vem ameaçando a democracia. Um mal fundado no exercício da mentira, da instigação ao ódio, e na busca de eventual destruição da democracia em nome "da liberdade". A literatura sobre este perigo, destacada pela emergência de 'Como morrem as democracias' (Levitsky e Ziblatt, 2018) e Os Engenheiros do Caos (Giuliano da Empoli, 2019), foi bastante ampliada.
Mas a democracia sobrevive, e segue como nossa via para algo melhor em cada Nação.
Infelizmente - e novamente evoco Sivuca - a Lua permanece espreitando reuniões de tristeza da humanidade. Não só no Brasil. No Mundo.
ADENDO. Faço minhas as palavras de Fernando Gabeira, no O GLOBO de 20/11/2023, a seguir. E digo que isso não representa nada contra Israel. Ocorre que Netanyahu é um dos extremos em ação. Assim o descrevo, em Matemática: Netanyahu (e seu grupo) = Hamas X (-1); os dois são simétricos, e sanguinários.
Fala, Gabeira, ex-guerrilheiro, sempre humanista, velho de boa cepa [Eu já disse o mesmo óbvio - com minhas próprias letras - em conversas com meus botões]:
"Não é possível concordar com quem usa mulheres e crianças como escudo humano. Mas também não é possível concordar com quem mata escudos humanos, numa tentativa de alcançar o Hamas".
"O que fizemos com a natureza ameaça nossa existência, só falta nos destruirmos antes de sermos expulsos pelo próprio planeta".
Tarcisio Patricio, doutor em Economia e professor da UFPE, aposentado.