Não se silencia a voz da defesa
Quando um Ministro da Corte Suprema se dirige à principal entidade da sociedade civil, imbuída da defesa da ordem jurídica do Estado democrático de direito, de maneira ríspida, por estar fazendo a mesma o papel dela, que recado envia?
Na dinâmica própria do Direito-Ciência, não se promove justiça pela metade, como se dá ao se inviabilizar o exercício da defesa. É na sustentação oral, por exemplo, que a parte, representada por seu advogado, se faz ouvir diretamente pelo Judiciário. Dificultá-la, portanto, é negar a própria lógica civilizatória, ao se libertar da ideia de vingança privada.
Quando articulada de forma clara, em aditivo a memoriais escritos entregues aos julgadores, na linguagem mais direta possível, sem mergulhos carpados nas profundezas dos dicionários, uma sustentação oral de qualidade pode muito bem mudar o curso de um caso e alterar a percepção sobre as suas circunstâncias. O poder do convencimento é a grande arte da advocacia.
Embora nada substitua o contato visual entre quem argumenta e quem julga, no ensejo tanto do ato de dizer o direito, quanto no de instruir a marcha processual, a consolidação do modelo virtual de julgamento colegiado não deve jamais levar ao conformismo de presumir que houve o esvaziamento da força de uma boa sustentação oral, conjugada, vale repetir, à prévia oferta de memoriais.
Controlar o nervosismo e a timidez, treinar o que vai falar, cronometrar o tempo, driblar a tentação do uso incontido de palavreado rebuscado, evitar ficar a todo tempo lendo um papel, ser pontual, não fazer citações de memória sem certeza do teor e autoria, são dicas recorrentes, assim como, no tocante ao julgador, a atenção ao orador, na compreensão basilar do princípio colaborativo, hoje galvanizado no artigo 6º do Código de Processo Civil.
Preparar-se para sustentar oralmente não é receita de bolo. A exemplo de pedalar uma bicicleta, requer perseverança. Já do lado oposto do balcão, para quem escolhe trajar a toga, consideradas as altas responsabilidades que o cargo impõe, a sustentação oral jamais, em época alguma pode ser encarada a priori como tempo perdido. Não há hermenêutica que convença do inverso.
A leitura isenta da história reconhece no STF o epicentro da resistência que impediu o degringolar da democracia nos últimos anos e um número ainda maior de mortos pela COVID-19. As cenas do 8 de janeiro de 2023 em Brasília, cuja fúria se abateu com impiedoso requinte sobre a sede do Supremo, mostram que, ao atuar como atuou diante de tantos ataques sofridos por "gabinetes de ódio", a Corte despertou instintos de beligerância inadmissíveis. Não se trata de exagero ou bravata ou delírio: a democracia como hoje a conhecemos, ainda que com todas as suas imperfeições, deve muito ao STF.
Lado outro, é preciso ter a clareza de que a persecução criminal, inclusive, contra os que conspiram para aniquilar a letra constitucional, não pode sob hipótese nenhuma ser válida (ou validada) mediante o sacrifício ou relativização do devido processo legal, que afasta as fogueiras, os enforcamentos e as guilhotinas do passado, "evoluções" da Lei de Talião com seu célebre olho por olho e dente por dente.
Quando um Ministro da Corte Suprema se dirige à principal entidade da sociedade civil, imbuída da defesa da ordem jurídica do Estado democrático de direito, de maneira ríspida, por estar fazendo a mesma o papel dela, que recado envia? Quando sustenta que uma nota pública dessa entidade irá servir para render tweets dos inimigos do declarante ou que o Regimento Interno do Tribunal que compõe vale mais que o Estatuto da Advocacia, lei federal com quase trinta anos de vida, no específico capítulo das prerrogativas, não estará a fornecer munição aos seus detratores? Há margem para girar o leme e se impedir que o barco despenque cachoeira abaixo.
Urge que a sustentação oral e suas variantes (questões de ordem e intervenções para esclarecimento de fato), constem literalmente do artigo 5º da Constituição, que protege como cláusula pétrea a ampla defesa, "com os meios a ela inerentes". Se não o próprio STF de modo colegiado, que o Congresso assim o diga. O que não existe é justiça a qualquer preço, assim como, por igual, impunidade como mal menor. Que o Supremo não se desvie da rota da temperança, ao tempo em que siga a punir os que merecem punição, inclusos os que se apoderam do verde e amarelo da nossa bandeira para atear fogo nela.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado