Ainda sobre linguagem
Por meio da recente Nota Recomendatória n° 4/2023, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon) recomendou a Instituições a adoção da linguagem simples e do direito visual
No artigo “Desafios da Comunicação: da Torre de Babel à Linguagem Simples (JC, 29.10), ressaltamos a importância da adoção das regras da “linguagem simples” para a comunicação dos Tribunais de Contas (TCs), o direito à informação e o exercício do controle social.
Pois o tema vem ganhando força. Por meio da recente Nota Recomendatória n° 4/2023, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon) recomendou a essas Instituições a adoção da linguagem simples e do direito visual. A proposta segue a mesma linha daquela aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (Recomendação 144/2023) para o Judiciário.
A ideia é que a adoção da linguagem simples e o direito visual pelos TCs se estenda, na medida do possível, a todos os documentos de natureza técnica (relatórios de auditoria, pareceres, decisões, acórdãos, atos administrativos, etc.), além das ações de comunicação social.
A nota defende, ainda, a aplicação de um código de resposta rápida (QR Code), que forneça informações complementares e faculte o acesso a formas alternativas de comunicação, como áudios, vídeos legendados e com janela de Libras. Por fim, estimula ações de capacitação, guias, cartilhas, glossários e modelos que auxiliem a simplificação e a uniformização da identidade visual.
Aproveito o mote da linguagem simples para compartilhar uma reflexão que tenho feito sobre uma palavra muito utilizada ao se falar na atuação dos TCs e que, no atual contexto de desinformação e críticas exacerbadas às instituições públicas, às vezes é distorcida.
Refiro-me à palavra “Técnico(a)”, quando usada para adjetivar documentos ou agentes públicos. Comumente encontramos, tanto em normativos dos próprios Tribunais quanto em matérias jornalísticas ou discussões informais, as seguintes expressões: “Corpo Técnico”, “Relatório Técnico”, “Parecer Técnico”, “Área Técnica”.
Uma digressão necessária. As deliberações dos TCs são tomadas a partir de um processo de controle que se divide em duas fases. A primeira, a de Instrução, envolve a coleta de dados e informações da gestão pelos auditores e a elaboração de um Relatório onde são apontados os “achados positivos” (regularidades) e “negativos” (irregularidades).
Após o relatório, os gestores, contra os quais foram apontadas irregularidades, apresentam suas defesas. A fase subsequente é a de Julgamento. Aqui, os membros dos Tribunais (Ministros, no TCU, e Conselheiros, nos demais TCs), integrantes de seus órgãos colegiados (Câmaras/Turmas e Plenário), com a presença do Ministério Público Especial, julgam e decidem sobre as matérias em exame.
Voltando à questão da “Técnica”. É natural denominar de “técnicos” os documentos elaborados pelos auditores de controle externo, assim como eles próprios, tanto para diferenciar das peças processuais produzidas pelos julgadores, quanto pelos conhecimentos técnicos exigidos nos concursos. No entanto, ocasionalmente, a expressão “técnica” é usada para desmerecer ou mitigar a legitimidade das decisões proferidas pelas instâncias julgadoras dos Tribunais de Contas.
O fato é que tudo o que é produzido por esses órgãos tem, em princípio, natureza técnica. O referido relatório, elaborado na primeira fase do processo, baseia-se em conhecimentos e metodologias de ordem técnica. Mas igualmente técnicas são as decisões finais dos seus membros, que precisam indicar, em bases lógicas e racionais, as motivações que os fazem aceitar ou divergir do relatório ou das defesas dos gestores.
É natural que o juízo de valor dos julgamentos dos TCs possa, eventualmente, ser diferente da opinião da auditoria, proferida na primeira fase do processo. Isso é possível porque, nesse momento, em regra, os auditores não enfrentam, de forma ampla, as provas, as razões, as circunstâncias e os obstáculos trazidos ao processo pelos gestores, justamente após e com base no teor do relatório.
A tarefa de avaliar provas e argumentos produzidos pela auditoria e pelos gestores, sob a luz da proporcionalidade e do contraditório, é papel dos julgadores. Não sendo uma habilidade cartesiana, é possível, com razoabilidade e dentro da moldura legal, divergir das conclusões do relatório de auditoria, até mesmo na ausência de defesa ou de fatos posteriores.
A independência funcional da auditoria e o livre convencimento motivado do julgador assim o permitem. Isso é evidenciado pelas divergências que podem ocorrer entre os próprios julgadores. Se os documentos processuais são técnicos, o mesmo se aplica aos agentes do controle que atuam em ambas as fases processuais: auditores e julgadores (o mesmo vale para os membros do MP especial).
Os requisitos legais para ocupar esses cargos demandam a comprovação de habilidades e conhecimentos multidisciplinares.
Portanto, sem esgotar o tema, concluo, na busca pela melhor linguagem, preferindo os termos: “Relatório de Auditoria”; “Parecer”; “Decisão”; “Acórdão”; “Auditores”; “Julgadores”; “Fiscalização”; “Julgamento”. Tudo e todos essenciais ao bom controle externo da gestão.
*Valdecir Pascoal é Conselheiro do TCE-PE