Só o altruísmo recíproco nos salva

Eu comecei precisar tomar transfusões de sangue a partir dos dois anos de idade. Em 1967, na cidade onde nasci (Guarabira), os médicos não conheciam a anemia falciforme. Minha mãe trabalhava no Hospital do SESP, o primeiro grande serviço de Saúde Pública do Brejo paraibano, inaugurado anos antes.

Foi o hematologista Gílson Guedes (in memoriam), especialista em câncer de medula óssea, quem obteve meu primeiro diagnóstico para esse tipo de hemoglobinopatia. Nos primeiros dez anos eu vivia internado em João Pessoa, principalmente no AMIP.

Quando a crise era mais severa e minha hemoglobina caia abaixo de 8, as transfusões eram inevitáveis. Papai levava grupos de quatro, cinco doadores de cada vez. A iniciativa do meu pai e o altruísmo de seus companheiros me salvaram inúmeras vezes.

Eu não lembro da última vez que recebi bolsas de sangue. Lembro que em 2003 eu tive uma crise pesada em Campina Grande (PB) e a hematologista do hospital tentou me convencer a receber transfusões. Já havia mais de 15 anos que eu não precisava repor as hemácias por transfusão. Era um período em que os especialistas estavam falando muito numa tal de "janela imunológica" que poderia abrir um flanco perigoso para contaminação pelo vírus HIV e outros.

Hoje em dia o sangue coletado na Hemorrede é testado para várias doenças, especialmente aquelas que passam pelo sangue e pelas relações sexuais sem proteção: hepatites, AIDS, chagas etc.

Quem possui doenças sanguíneas como a falciforme e as talassemias e que precisa de transfusões periódicas enfrenta outro tipo de problema. Uma reação do organismo (autodefesa) que entende o sangue novo como um invasor. Nesses casos, o paciente precisa tomar sangue fenotipado.

A doação do sangue é, sem dúvida, o ato humano que torna a nossa espécie ainda mais longeva e adaptada. Antes dos bancos de sangue, como os conhecemos hoje, as transfusões ocorriam braço-a-braço, principalmente nas emergências ocorridas nas guerras.

A descoberta dos grupos sanguíneos (A, B e O) só ocorreu em 1910, quando o pesquisador vienense, dedicado ao estudo da genética do sangue humano, Karl Landsteiner (1868 - 1943) começou a estudar seu próprio sangue e de colegas de laboratório. Essa investigação também definiu que os grupos sanguíneos são positivos ou negativos.

Sangue e altruísmo

Em 1971, o sociobiólogo Robert L. Trivers definiu o conceito de "altruísmo recíproco", como um processo que favorece cooperação entre parceiros. Outro Robert (Wright) fez uma relação curiosa entre o altruísmo recíproco e a teoria da evolução das espécies de Charles Darwing.

Doar sangue é doar vida, é doar saúde. Só há outra atitude mais humana e mais complexa: a concepção e geração dos bebês pelas mães. Ou a doação de órgãos humanos em vida.

Além da questão inicial sobre a doação do sangue, o Brasil vive um momento decisivo para aperfeiçoar sua produção dos chamados "hemoderivados". A coleta seletiva do plasma do sangue humano que é o principal insumo para a fabricação desses biofármacos, pode ser aprimorada com um reforço na estruturação estratégica da Hemobrás.

Essa é uma área da indústria de Saúde estratégica para o Brasil e que está sendo ameaçada nesse momento com uma proposta de mudança na Constituição Nacional (a PEC 10,2022). Investidores estrangeiros, lobistas nacionais e parlamentares malintencionados pretendem flexibilizar a coleta, o processamento e a comercialização do plasma.

Até a década dos anos 40 do século passado a captação do sangue humano podia ser retribuída, inclusive com remuneração monetária. A Constituição Cidadã de 1988 acabou com isso. Aí eu lembrei da música que a Elza Soares canta, que diz que "(…) a carne mais barata do mercado é a carne negra!". Se o negócio da comercialização de sangue humano for novamente legalizado no Brasil, imagina qual será o sangue mais barato do mercado?...

Enquanto o debate prossegue nos canais midiáticos da Opinião Pública, eu saúdo todos aqueles que ajudaram o Sr. Martim Batista a me salvar há meio século. Saúdo os doadores e doadoras de sangue que vão frequentemente aos bancos de coleta entregar de maneira benevolente, gratuita, altruísta e voluntária esse bem inigualável e tão precioso.

Dalmo Oliveira,  jornalista e fundador da Associação Paraibana dos Portadores de Anemias Hereditárias.