OPINIÃO

Faz alguma coisa, vó!

Estamos reproduzindo, no âmbito cultural, a história da menina má narrada por Clarice. Tudo tem sido adiado para amanhã. O dinheiro existe. Teria sido aplicado na compra dos tijolinhos de cimento que deixaram as ruas do Recife mais esburacadas, feiosas e acidentadas?

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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 03/12/2023 às 0:00 | Atualizado em 03/12/2023 às 8:21
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Os avós são lendas e têm algo de mágico ou de prestidigitação. As minhas netas, por exemplo, asseguram que sou perene. Por isso vivo a exaustão dos meus "30 anos" de honorária aleivosia. Uma delas - Larissa - enviou duas fotos da casa de Clarice Lispector acompanhadas da frase-título deste artigo. O sobrado, na frente da Praça Maciel Pinheiro ganhou uma visão mal-assombrada, embora seja um legado precioso dos tempos em que a escritora, ainda criança e adolescente, residiu no Recife.

Em 2020, por ocasião dos 100 de nascimento de Clarice, a Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE) prestou uma homenagem "post mortem" à autora: o título de cidadã pernambucana. O ano passado, a Fundação Joaquim Nabuco divulgou que já estava em fase de negociação os recursos para revitalização do imóvel.

Os dois fatos poderiam significar que conferimos especial importância à educação, tradição e cultura. Isso acontece como retórica. A prática revela que somos um país do desrespeito, profanação cultural e imediatismo confesso. Não nos preocupamos com o legado dos antepassados, com o resgate da nossa história e perpetuação dos nossos valores. Somos apenas "hoje e agora".

Observações dessa ordem são inquietantes. Até porque temos um prefeito jovem, dinâmico e habilidoso na administração municipal e uma mulher inteligente e aguerrida no comando de Pernambuco. Mas é indispensável a decodificação das promessas do governo federal. Há tanto dinheiro sendo gasto em quimbembeques! Nada custaria a aplicação do real num torrão de açúcar. Isso mesmo! Cultura no Brasil vale menos do que um rebuçado. Faz-nos lembrar a obra de Clarice, "Felicidade Clandestina", onde uma menina sonhava com a leitura de um livro e era bloqueada pela crueldade de outra. A criança era pura vingança no exercício com calma ferocidade do seu sadismo. Na minha ânsia de ler - dizia a escritora - eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar o empréstimo do livro de Monteiro Lobato. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. E fui à sua casa, literalmente correndo. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina e que eu voltasse no dia seguinte. A partir daí tudo era mesmo "o dia seguinte". "Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança me tomava por completo e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife". Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa mais uma recusa, apareceu a mãe da menina malvada. Essa mãe boa tudo entendeu. "Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! ".

Estamos reproduzindo, no âmbito cultural, a história da menina má narrada por Clarice. Tudo tem sido adiado para amanhã. O dinheiro existe. Teria sido aplicado na compra dos tijolinhos de cimento que deixaram as ruas do Recife mais esburacadas, feiosas e acidentadas? Talvez tenha sido carreado para o custeio da decisão do Conselho da Justiça Federal (CJF) ao conceder aos juízes até dez folgas por mês ou compensação equivalente em dinheiro por conta de "atividades administrativas ou processuais extraordinárias". Qual é mesmo o significado da expressão "atividade extraordinária"?

Mas estou esquecendo a rogativa da minha neta. Afinal, as adolescentes vivem de expectativas e ilusões. Algo parecido com a noiva, em tempos idos, quando saboreava, ao acordar na manhã das bodas, a proximidade do gozo noturno no aposento nupcial: Será hoje. Enfim!

Em pano rápido, ainda repassamos a imagem de outro sobrado. Está localizado em Campo de Ourique, Lisboa. A pedido da Câmara, a arquiteta italiana Daniela Ermano cuidou do projeto. Em cada visita ao museu é possível esbarrar na figura esguia e nobre de Fernando Pessoa. Basta existir inteligência, sensibilidade e corpo do visitante. E até podemos escutar a voz de Clarice - na escrita de Olga Borelli: "Para quem pensa, é tão engraçado ter também um corpo... Tudo me toca, vejo demais".... Mas não existe a palavra "demais", Clarice, quando se trata de administrar as coisas do espírito.

Diferente de Pessoa, o sobrado da escritora - tão surrealista, perdido, deslembrado e cravado num Recife de raras ou incomuns esperanças - não teve igual destino. Afinal, o brasileiro existe no formato de tempestade. Somos tsunamis com capacidade para destruir tudo pelo caminho, embora deixemos incólumes a ignorância e a inércia dos governantes.

Finalmente, vale a pena repassar duas observações da escritora da "incompletude" e do conflito entre o sim e o não: É mais seguro jamais fazer perguntas - porque nunca se atinge o âmago de uma resposta. Afinal, a resposta traz em si outra pergunta. Ignorando essas advertências, ainda sou livre para indagar: Até quando viveremos às vésperas do não fazer nunca?

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.

 

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