De que morreu Fernando Pessoa?
Mas tuberculose, mesmo intestinal, jamais daria um quadro agudo como o seu. Disso também não morreu.
Nas últimas colunas, falamos do fim de Pessoa. Falta o complemento. Tentando saber de que morreu Pessoa. Ao responder, antes de tudo, é preciso considerar o cenário primitivo da medicina àquele tempo. Para exames de imagem, único recurso era a radiografia (desde 1895). O uso de plasma, como transfusão, apenas começava. Sulfas são de 1936; bancos de sangue, de 1937; penicilina, de 1944; ultrassonografia, endoscopia, tomografia, ressonância magnética e outros exames sofisticados viriam só na segunda metade do século XX. Tudo bem depois de sua morte, no distante 1935.
Em Portugal, longe dos grandes centros da Europa, atendimentos médicos domici liares ainda eram rotina. Hospitais destinavam-se apenas a casos graves, quase sempre terminais; e mais pareciam asilos lugares a que se ia para amainar dores de feridas crônicas, fazer amputações, lancetar grandes abscessos e morrer. Sem informações médicas mais detalhadas, resta especular sobre o diagnóstico. Vamos aos mais indicados pelos especialistas que consultei, todos (e foram muitos) professores doutores.
CIRROSE. Referência mais comum, entre os especialistas em Pessoa, é que a morte se deu por cirrose, a partir do álcool que consumiu pela vida inteira. Cirrose é fibrose grosseira que endurece o fígado e o leva à falência. Pode também evoluir para grande conjunto de consequências físicas disfunção sexual, atrofia testicular, aumento das mamas, queda de pelos; além de lesões vasculares da pele, em forma de aranha, conhecidas como telangiectasias aracniformes — dado seu tamanho diminuto, não facilmente reconhecíveis por quem convive com o paciente. Ausente quaisquer destes sinais, em seu caso.
Não obstante, o histórico de Pessoa sugere ser mesmo grande a chance de haver tido cirrose. Talvez até mais que apenas uma grande chance. É esse, aliás, o diagnóstico do médico dr. Bastos Tigre, depois de examiná-lo pelos anos 1920. Com o conhecimento que se tem hoje, é bem sabida a relação epidemiológica direta entre cirrose e alcoolismo, num período de 25 anos, avançando à medida que aumenta o volume do álcool. Praticamente nula até uma ingestão diária de 40 gramas, evolui para percentual de 50 por cento ao atingir 200 gramas, sem aumentos estatísticos a partir de então. E Pessoa bebia, por dia, muito mais que ditos gramas.
Na tentativa de calcular o montante de álcool diário por ele consumido, Francisco Manuel Fonseca Ferreira contabiliza uma garrafa de vinho a cada refeição principal, seis cálices de aguardente ao longo do dia, mais uma garrafa de vinho (ou mesmo garrafão) durante a noi te. Provavelmente, a quantidade seria maior ainda. A começar pelos seis cálices de aguardente, ao longo do dia, que parece uma conta modesta. Sobretudo no período próximo da morte. Sem contar que à noite, em vez de vinho, quase sempre prefere mesmo a aguardente da bendita garrafinha que sempre sempre o acompanhava.
Mas não é cirrose, com certeza, a causa de sua morte. Nem nenhuma doença hepática crônica descompensada. Tivesse efetivamente sofrido algo assim, dificilmente exibiria o vigor intelectual e a grandeza na produção do seu último ano de vida. Sabemos que se sentiu mal, teve dores abdominais e internou-se no hospital. Tudo muito rapidamente. Mas, para que morres se de cirrose, teria necessariamente demonstrado antes, além de desnutrição e fraqueza muscular (adinamia) intensa, também alguns dos sintomas clássicos que acompanham o estágio terminal de todas as cirroses. Em breve resumo:
a) Icterícia – em que apresentaria o corpo amarelado.
b) Ascite – em que aumentaria o volume do seu abdome. As calças ficariam com alguns botões sempre abertos e, nas pernas, demasiado grandes; posto que essa ascite, enquanto faz o restante do corpo definhar, aumenta só a cintura do paciente daí vindo sua designação popular, barriga-d’água.
c) Distúrbios neuropsíquicos – em que teria tido necessariamente agravadas, pelo álcool, disfunções neurológicas (como tremores, sobretudo nas mãos) e obnubilação (perturbação da consciência).
d) Hemorragia digestiva alta – com perda de sangue. Caso essa perda seguisse o trânsito digestivo normal, teria as fezes enegrecidas; e, quando não, vomitaria sangue. Um sintoma que, dado ter pai tuberculoso, logo chamaria a atenção da família, dos amigos, dos colegas de escritório, sobretudo porque são hemorragias geralmente volumosas.
e) Coma – por falência funcional do fígado ou complicações infecciosas.
Sem nenhuma referência qualquer a estes sinais, no relato dos amigos que com ele estiveram nos últimos dias. Nem no dos médicos que o atenderam. Mas não apenas por isso deve-se afastar, definitivamente, a hipótese de ter sido cirrose a causa de sua morte. Sobretudo porque cirrose não causa dor abdominal aguda, sua grande queixa nos últimos dias de vida. Só essa constatação bastaria.
OUTRAS CAUSAS POSSÍVEIS. As dificuldades para um diagnóstico aumentam. Na certidão de óbito da 5a Conservatória (hoje, com registro transferido à 7a Conservatória do Registro Cível de Lisboa, folha 805, assento número 1.609), está obstrução intestinal sem informações sobre o que teria levado a essa obstrução. Um evento pouco provável pela falta de distensão abdominal, de movimentos peristálticos visíveis ou vômitos.
Seria também razoável, sempre em tese, que pudesse ter tido tuberculose (a doença que vitimou seu pai) ou outros males do pulmão, por ser um fumante inveterado. De charuto e cigarro. E não custa lembrar que teve sempre gripes fortes, pela vida “dor de garganta”, como diz em seu diário. No início três por ano, ao passar do tempo foram ficando bem mais frequentes. E tantas eram que preferia dormir em um quarto interno do apartamento, longe do frio que no inverno penetrava pelas janelas. Mas tuberculose, mesmo intestinal, jamais daria um quadro agudo como o seu. Disso também não morreu.
No Livro de Registro do Hospital São Luís dos Franceses, o diagnóstico do dr. Jaime Neves é cólica hepática.
José Paulo Cavalcanti filho, advogado