OPINIÃO

A questão de Essequibo e o teste da liderança brasileira

Ditadores engendram cuidadosamente crises artificiais, muitas vezes centradas na criação de um inimigo comum. Este inimigo, fictício na maioria dos casos, serve como cortina de fumaça para obscurecer as deficiências administrativas, econômicas e sociais de seus regimes.

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Antonio Henrique Lucena Silva

Publicado em 13/12/2023 às 11:21
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Historicamente, ditadores buscam fabricar crises como forma de se preservar no poder. Podemos observar a recorrência da utilização desses artifícios por parte de alguns líderes autoritários que buscam conseguir ganhos políticos. Entre tais estratégias, destaca-se a fabricação deliberada de crises, um expediente que visa deslocar o foco da atenção pública dos problemas internos para uma suposta ameaça externa ou problema que necessita de solução.

Ditadores engendram cuidadosamente crises artificiais, muitas vezes centradas na criação de um inimigo comum. Este inimigo, fictício na maioria dos casos, serve como cortina de fumaça para obscurecer as deficiências administrativas, econômicas e sociais de seus regimes.
A fabricação de problemas assume diversas formas, desde a manipulação de eventos até a disseminação de informações falsas, popularmente conhecidas como fake news. A agitação deliberada de conflitos, a exacerbação de divergências étnicas, religiosas ou culturais e a amplificação de ameaças externas imaginárias são táticas frequentemente empregadas. Líderes exploram o medo e a incerteza para consolidar seu apoio interno, apresentando-se como os únicos capazes de proteger a nação contra os supostos perigos. Ademais, eles oferecem uma justificativa conveniente para medidas extremas, como restrições às liberdades individuais, supressão de oposição política e controle rigoroso sobre a mídia.
A verdadeira tragédia reside na manipulação da confiança pública, na deturpação da realidade e na exploração da boa-fé dos cidadãos para fins autocráticos. Imerso em uma crise econômica, Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, utilizou o expediente descrito acima para gerar uma “unanimidade” interna sobre a questão de Guiana Essequiba, como se referem dentro do País. De fato, Essequibo é um contencioso que dura quase 200 anos. O debate fronteiriço começou desde a independência da Venezuela, quando a Grã-Colômbia de Simon Bolívar fracassou em seu intento. O governo do General José Antonio Páez reclamou parte do território e pediu ajuda do governo americano contra o britânico, que havia adquirido a região da Guiana dos holandeses, seus colonizadores iniciais.
Em fevereiro de 1897, a Venezuela concordou em participar de uma arbitragem internacional envolvendo o Reino Unido e os Estados Unidos. A comissão instituída emitiu um voto favorável a Londres em 3 de outubro de 1899, estabelecendo a "Linha Schomburgk" como a divisão fronteiriça que perdura até hoje. Apesar desse movimento, Caracas continuou a reclamar em outros fóruns internacionais. O acordo de Genebra buscou tratar a questão de forma pacífica. De 1982 a 1999, Venezuela e Guiana tentaram resolver a disputa por meio de bons ofícios, mas sem conclusão. Foi no governo do já falecido presidente Hugo Chávez que a disputa foi encerrada. Chávez abdicou dos interesses de Caracas na região. Se a questão já estava resolvida para o governo da Venezuela, por que ela ressurgiu nos dias atuais? Uma das razões, como ilustrado acima, é que é conveniente para Nicolás Maduro ter fabricado essa crise. Com a queda da popularidade interna, crise econômica e mesmo perseguindo a oposição, o mandatário do país corria o risco de deixar o poder. Ela também serviu para gerar maior coesão interna e garantir apoio para o referendo realizado em 3 de dezembro. Convém ressaltar que a Exxon Mobil, em 2015, descobriu petróleo e gás natural na costa da Guiana, exatamente no mar territorial de Essequibo. Esses dois fatores combinados são responsáveis pelo "renovado" interesse de Caracas na região. Como tratado na primeira parte deste texto, a criação de problemas com fins políticos não é recente: Saddam Hussein acusou o Kuwait de roubar petróleo do país, gerando a Guerra do Golfo de 1991. Vladimir Putin, sob o falso pretexto de "desnazificar" a Ucrânia e que ela seria incorporada à OTAN, atacou e anexou regiões.
Essas violações territoriais podem se manifestar em algo que preocupa o Brasil: o seu entorno estratégico. A crise de Essequibo é, antes de tudo, um teste para a liderança de Brasília no subcontinente sul-americano. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva evocou novamente a falsa simetria de que ambos os lados precisam de moderação. Nesse caso, a Guiana é a parte que pode sofrer uma ação militar. Portanto, o discurso precisa ser voltado e direcionado ao Presidente Maduro. Um teste para a intermediação do Brasil é que os dois países foram buscar apoio de potências extrarregionais. Georgetown iniciou diálogo de alto nível com os EUA para a instalação de uma base no país. Maduro tenta apoio de Putin para a crise. Teria Lula condições de frear o ímpeto expansionista de seu aliado?
É imperativo que a comunidade internacional permaneça vigilante desses instrumentos que comprometem a paz, a estabilidade e a dignidade de nações inteiras. O combate a tais práticas, como anexações territoriais, exige uma abordagem colaborativa e a promoção contínua dos valores universais centrados no respeito às nações, e deixar claro que essas "aventuras" não serão toleradas. O Brasil precisa ficar atento a esses processos. Barrar o tensionamento criado por Maduro, assim como deter a instabilidade geopolítica, será um teste para o Brasil, e se Lula tem alguma ou nenhuma influência.

Antonio Henrique Lucena Silva,  doutor em Ciência Política (UFF) e professor da UNICAP

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