OPINIÃO

O Chile precisa de uma Constituinte?

A elaboração de duas propostas de Constituição totalmente opostas, e rejeição de ambas, num curto intervalo de tempo, mostra o quanto os constituintes, de um lado e outro do espectro ideológico, ignoraram a visão dominante na sociedade chilena. Tentaram empurrar goela abaixo as suas próprias ideologias. Ainda bem que fracassaram

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SÉRGIO C. BUARQUE

Publicado em 20/12/2023 às 0:00 | Atualizado em 20/12/2023 às 18:44
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Políticos, analistas e meios de comunicação costumam considerar, de forma equivocada, que o Chile continua sendo regido pela "Constituição de Pinochet". Não é verdade. Mostra desconhecimento da realidade chilena e constitui uma grande injustiça com a Concertacion, aliança política que dirigiu o Chile durante vinte anos, de 1990 a 2010 (a maioria dos quais presidida por socialistas) e realizou várias reformas no texto constitucional herdado da ditadura de Pinochet. A maior destas reformas, realizada em 2005, durante o governo do socialista Ricardo Lagos, eliminou os resquícios de autoritarismo que ainda permaneciam na velha Constituição sancionada pelo ditador em 1981. Se é para dar um nome à Constituição, rigorosamente, a atual carta magna deveria se chamar "Constituição de Ricardo Lagos", o presidente que assinou o documento final da reforma constitucional de 2005".

O "estalllido social" de 2019, meses de convulsão social e vários mortos pela repressão, escancarou a enorme insatisfação na sociedade chilena decorrente, principalmente, da degradação do sistema de capitalização da previdência social, da pressão do crédito educativo e a da deterioração da saúde pública. Nos seus vinte anos de governo, a Concertacion não soube ou não teve competência para lidar com estes desafios e a rebelião social empurrou o governo conservador de Sebatián Piñera para uma negociação política que culminou com a convocação de uma Constituinte. Esta palavra mágica serenou os ânimos da população, criando a ilusão de que, finalmente, o Chile iria enterrar o ditador junto com as mazelas sociais do país.

Desde então, o Chile já teve duas Constituintes que se sucederam formulando propostas de Constituição totalmente diferentes - a primeira, com um radical identitarismo, e a segunda, com uma conotação ultra-conservadora - sendo ambas rejeitadas em plebiscitos pela sociedade chilena. O presidente Gabriel Boric que, em quase dois anos de governo teve de conviver com o ruído político de dois plebiscitos constitucionais, parece ter entendido agora que é possível e politicamente até mais fácil reverter os problemas sociais do Chile com reformas constitucionais localizadas e, até mesmo, projetos de leis infraconstitucionais, a exemplo do que fez a Concertacion no terreno político-institucional. Depois de ressaltar a soberania popular na rejeição da nova proposta de Constituição, Boric afirmou que "durante nuestro mandato se cierra el proceso constitucional. Las urgencias son otras" e que o Chile continuará com a Constituição vigente.

Pelo visto, o Chile perdeu dois anos esperando o milagre de uma nova Constituição, fracassando e ainda alimentando a polarização e a divisão política dos chilenos, como afirmou o próprio presidente. Sem embarcar na fantasia de uma mudança constitucional, poderia ter avançado em reformas nas áreas críticas de previdência, saúde e educação, com a aprovação de projetos de lei e mesmo algumas emendas constitucionais (quando necessárias), atraindo o apoio da sociedade para aspectos concretos da realidade chilena. Embora tenha uma economia sólida e possa comemorar alguns dos melhores indicadores sociais da América Latina, o Chile continua com problemas sociais antigos e tem sido vítima de um crescimento recente de violência, consumo e tráfico de drogas e crime organizado.

A elaboração de duas propostas de Constituição totalmente opostas, e rejeição de ambas, num curto intervalo de tempo, mostra o quanto os constituintes, de um lado e outro do espectro ideológico, ignoraram a visão dominante na sociedade chilena. Tentaram empurrar goela abaixo as suas próprias ideologias. Ainda bem que fracassaram.

 

Sérgio C. Buarque, economista

 

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